"A direita vive uma das suas piores crises desde 1978”

Miguel Morgado, deputado e ex-assessor político de Passos Coelho, discorda “radicalmente” da tentação de tornar o PSD “um partido satélite do PS”. Permitir que o PS “negoceie com a extrema-esquerda e o centro-direita” é um risco para o “esvaziamento do PSD e da democracia”, sustenta.

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Nuno Ferreira Santos
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Com 43 anos, Miguel Morgado tem sido um dos deputados que assumem críticas a Rui Rio nas reuniões da bancada do PSD. Como antigo vice-presidente da bancada para os assuntos europeus, o social-democrata é duro para o novo líder sobre o acordo com o Governo em torno dos fundos comunitários: “Houve um afã de ir a correr para junto de António Costa”. Miguel Morgado, que fazia parte do núcleo duro de Passos Coelho no anterior Governo, diz que, “aqui e ali”, a acção do Presidente da República podia ser “mais sintonizada com a confrontação dos problemas, e não com a sua ocultação”.

O PSD devia clarificar já a posição sobre Orçamento do Estado (OE)?
Revejo-me nas declarações que Rui Rio tem feito até agora. Por um lado, ele tem colocado a responsabilidade política nas mãos da "geringonça". E depois diz que, para ter uma posição oficial, é preciso conhecer o documento. É uma posição razoável.

Então porque é que há estes receios na bancada de que o PSD tenha de viabilizar o OE?
Não posso falar em nome do grupo parlamentar. Do que eu tenho ouvido do presidente do partido, eu não tenho esse receio. Há um conjunto de pessoas do PSD que se têm pronunciado sobre o orçamento e outros temas, e sempre a manifestar uma preocupação pelo facto de o PSD estar ao lado do PS, a suportar o PS, em vez de construir uma estratégia alternativa de governação não socialista em Portugal protagonizada pelo PSD. Acho que são mais essas vozes, que não são as do presidente do partido, que têm levantado esses receios.

O líder do partido entrou em contradição com o da bancada…
A expressão que ele [Fernando Negrão] utilizou foi “tendencialmente” contra o Orçamento. Acho que é isso que está na cabeça do presidente do PSD.

Descentralização, leis laborais, Uber, ISP são temas em que PSD está mais próximo do PS. Acha que vem aí um bloco central?
É péssimo citar-me a mim próprio, mas vou abrir uma excepção para recordar que fui, provavelmente, a primeira pessoa, em público, a dizer que, depois da saída de Passos, o PSD se confrontava com uma questão que está sempre presente na vida do partido desde a sua fundação, é como um vírus: é a escolha entre fazer perdurar [ou não] o grande partido popular, que nasceu em 1974, que é uma alternativa essencial e não ocasional ao poder socialista. Essa foi a alternativa de Passos Coelho e de Sá Carneiro em 1978 e a de Cavaco Silva em 1985. A outra alternativa, que tem sido um dos grandes focos da luta interna até hoje, é aquilo a que tenho chamado "o projecto ASDI" [Acção Social-Democrata Independente, partido fundado por ex-sociais democratas, como Sousa Franco e Magalhães Mota, que concorreu às legislativas de 1980 coligado com o PS]. A ASDI 1 em 1978 e agora a ASDI 2. Há sempre um grupo de pessoas, de uma maneira mais discreta ou mais convicta, que se sentem de tal maneira inibidas na afirmação de uma alternativa ao PS que consideram que o PSD deve ser um partido satélite do PS. Que existe para ser uma muleta do PS. Discordo radicalmente. O PSD deixaria de ser um partido popular e nacional, tornar-se ia um partido irrelevante no sistema e seria substituído a prazo por um outro movimento qualquer. Não sei qual, um que já exista ou que venha a existir. Aos partidos não foi prometida a vida eterna e não é essa a minha preocupação, a minha preocupação é com a democracia portuguesa. Será sempre um momento de fragilização democrática aquele momento em que o PSD optar por ser um partido satélite do PS.

E o PSD está agora nessa fase?
Não, e é bom para a democracia portuguesa que não estejamos nessa fase. Nós tivemos um período muito complicado em que se deu o estabelecimento do poder socialista como um poder hegemónico no país - não é só no sistema partidário, é no Estado, é nas estruturas administrativas, é na sociedade, nas empresas, como vimos no período Sócrates entre 2005 e 2011. Ninguém pode ter dúvidas de que houve um poder hegemónico do poder protagonizado pelo PS.

Há o risco de essa alternativa ASDI se apoderar do PSD?
Há esse risco por outra razão, que não é específica do PSD ou do CDS. Sob certos aspectos, a direita portuguesa, vou chamar-lhe assim para a distinguir da esquerda, vive uma das suas piores crises desde 1978. E não estou aqui a imputar ao PSD ou CDS a responsabilidade dessa crise, que transcende em muito as lideranças actuais. Há uma crise cultural, intelectual e sociológica da direita em Portugal hoje. E é por isso que, nestes momentos de fragilização, a tentação dentro dos partidos para agravar a tal inibição do confronto, do conflito com o PS, aumenta. Há uma tarefa das pessoas que não se revêem no PS nem na extrema-esquerda de reconstrução da direita em Portugal, que está por fazer. Uma das razões por que me sinto frustrado quando olho para essa crise é ver que a minha geração falhou. Falhou, porque teve oportunidades para fazer essa reconstrução entre 2000 e 2010. E nós, por incompetência, incapacidade, por cobardia, não fomos capazes de o fazer. A esquerda tem a tarefa mais facilitada na medida em que o PS tem, desde 1995, uma ascendência sobre a sociedade portuguesa que tem aspectos sinistros – e estou a escolher a palavra - , mas tem-na e disfarça melhor as suas crises intelectuais.

É ou não legítima a estratégia de Rui Rio de se aproximar do PS para fazer reformas no país?
Rui Rio tem insistido – bem a meu ver – e segue de perto Passos, embora com prioridades diferentes, em garantir que a identidade política matricial do PSD é a de partido reformista. A abordagem do PS é antagónica a esta. Quanto à questão dos acordos, tem de se ver caso a caso. Em relação aos tais consensos de que ele fala, quando diz que nós não conseguimos fazer estas reformas sozinhos, considero que o enfoque tem de ser sobre o conteúdo da reforma. O caso mais estranho, mais bizarro e que ainda hoje não consigo compreender, é o do pseudo-acordo, que não tem conteúdo nenhum, sobre os fundos europeus. Houve um afã de mostrar serviço, de ir a correr para junto de António Costa. Acho que foi um acto falhado e, ainda por cima, correu tudo mal, porque o Governo tem sido péssimo a negociar o novo quadro comunitário de apoios.

Que riscos é que isso traz para o PSD?
Se o PSD optasse por uma estratégia de obter o consenso pelo consenso, mesmo prejudicando os conteúdos da reforma que trazemos para a negociação, acho que seria uma maneira velada de contribuir para um projecto ASDI. Mesmo involuntária, porque converteria o PS num daqueles partidos que existem em alguns países da União Europeia que têm de governar sempre. Quando lhe convém, negoceiam com a extrema-esquerda e, noutras circunstâncias, negoceiam com o centro-direita. Até podem nunca ganhar eleições, mas governam sempre.

Essa é uma ameaça para o PSD?
Esse risco existe e é o esvaziamento da democracia portuguesa, tendo em conta que o PS tem sistematicamente este projecto de poder hegemónico. Não é só um esvaziamento do próprio PSD, é algo de perigoso para a democracia portuguesa.

O PSD nunca deverá fazer um bloco central? É contranatural?
O país não precisou de um bloco central para resolver o problema mais grave que teve nos últimos 40 anos: foi a bancarrota em que o PS nos deixou. O PSD e o CDS resolveram o problema. Sou daqueles que acham que seria um atestado de menoridade que o povo português passaria a si próprio, nas suas instituições, no seu sistema político, na sua Constituição, se considerasse que, em problemas relativamente menores, a solução é um bloco central. É muito importante que o eleitorado, que o povo português tenha sempre disponíveis duas escolhas diferentes, moderadas, de governação. Essas possibilidades de escolha têm de estar presentes. Se não, está-se a amputar uma das grandes virtualidades do sistema democrático. Se o grande partido nacional, que ainda é o PSD, optasse por uma estratégia que faz do PS o partido referencial, indispensável, perpétuo, seria o próprio PSD a esvaziar o sentido democrático das coisas. Isso parecer-me-ia profundamente negativo.

Quando Passos Coelho voltou à oposição fez bem em negar esta solução parlamentar? Que erros é que ele cometeu?
Eu fui muito próximo dele e sinto-me co-responsável nas decisões que ele tomou como primeiro-ministro e depois como líder da oposição. Tivemos divergências e sempre as discutimos da maneira mais aberta um com o outro, mas eu não vou querer comentar essas divergências e em que sentido é que ele errou. Também errou, claro, como qualquer político – eu também cometi erros nas minhas funções –, mas, nas coisas fundamentais, como primeiro-ministro e líder da oposição, ele esteve sempre certo.

O PSD está desiludido com Marcelo?
[Risos] Acho que o PSD não está desiludido com Marcelo. Marcelo Rebelo de Sousa é um Presidente diferente do que estávamos habituados. Faz sobretudo um grande contraste com o anterior Presidente da República. As pessoas adaptaram-se muito rapidamente ao novo estilo, porque era uma figura conhecida por toda a gente, e não só pela oligarquia em Lisboa. As pessoas do país inteiro sabiam quem era o Marcelo e o Marcelo depois quis ser, como Presidente, o Marcelo. Se tem havido uma grande coincidência entre os desejos do PSD, por um lado, e o Presidente da República por outro, acho que já ninguém estaria à espera que o Marcelo fosse uma espécie de instrumento da liderança do PSD. Nesse aspecto não houve desilusão. É preciso também recordar que essas perguntas foram feitas quando o seu antecessor estava em funções. E também nos últimos seis meses da liderança na oposição de Passos Coelho, quando Cavaco foi reeleito, e depois nos dois primeiros anos de governação PSD/CDS, durante o ajustamento, e quando houve momentos de grande tensão política entre o PSD e o Presidente Cavaco Silva. Essas tensões acabaram por ser, julgo eu, completamente sanadas. Não me esqueço que esses mandatos foram marcados por períodos de grande divergência política, em que Cavaco era acusado de estar sempre ao lado de Sócrates, de o favorecer. No segundo mandato já não, mas no primeiro havia uma grande colaboração. Marcelo herdou uma situação política de que não é responsável. O que pode haver é momentos particulares, aqui ou ali, em que a acção do Presidente da República podia ser mais atenta, mais eficaz, mais sintonizada com a confrontação dos problemas, e não com a sua ocultação. Qualquer magistrado da nação, qualquer político, não deve estar imune à crítica. E Marcelo Rebelo de Sousa, apesar de ser imensamente popular, não está nem deve estar imune à crítica.

No momento em que se debateu o estado da Nação, a Nação recomenda-se?
Portugal está a perder uma oportunidade e isso vai ser lamentado no futuro. É um país com muitos problemas, problemas estruturais, a grande maioria está identificada, estamos sob uma governação que é o socratismo com a extrema-esquerda. A "geringonça" aproveitou um período de grande explosão da economia mundial. Portugal foi arrastado por essa onda de prosperidade que permitiu ocultar os problemas do país. Portugal não está a beneficiar como deveria estar dessa onda. Somos um dos países que menos crescem na União Europeia e deveríamos ser daqueles que mais estão a crescer. Estamos a perder uma oportunidade muito semelhante àquela que aconteceu entre 2000 e 2008. Portugal tem problemas legados da crise terrível que sofreu entre 2010 e 2012, que ainda não estão sanados, e deveríamos aproveitar esta fase para os resolver. Temos ainda problemas europeus que transcendem a nossa capacidade e eu lamento que Portugal não tenha, com este Governo, qualquer estratégia europeia. A Europa atravessa este período de prosperidade, mas nem isso tem sido suficiente para calar os problemas. Isto coloca os partidos tradicionais sob imensa pressão. O PPE [Partido Popular Europeu] também enfrenta uma crise intelectual. Os partidos socialistas e de centro-direita estão em confronto nacional e depois, nas questões europeias, estabelecem um consenso. Não existe alternativa ao europeísmo que não o antieuropeísmo. O PPE deveria caminhar numa direcção que permitisse, pela primeira vez, desde há 40 anos, que emergisse em cada um dos espaços nacionais um europeísmo de esquerda e outro de direita. Para que o eleitorado moderado pudesse ter alternativa, para não deixar o antieuropeísmo contra esse pseudoconsenso tecnocrático no qual as pessoas cada vez se revêem menos.

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