Lekhfa: a beleza caótica do Cairo feita música

Na primeira noite da 20ª edição do Festival Músicas do Mundo, obrigatório dar ouvidos ao projecto Lekhfa. Três dos nomes maiores da música egípcia contemporânea num soberbo festim sonoro.

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Ruggero Maramotti

Após a deflagração na Tunísia dos protestos que originaram a Primavera Árabe, uma outra morte, no Egipto, acabou por irrigar com gasolina a revolta popular. No final de 2010, Khaled Said foi espancado até à morte por dois polícias que o arrastaram do interior de um cibercafé em Alexandria para a rua. Pouco depois, durante 18 dias dos primeiros meses de 2011, a Praça Tahrir, no Cairo, tornou-se o palco de prostestos que clamavam pelo fim de décadas de corrupção, violência policial, censura na imprensa ou desemprego. Em Fevereiro, o Presidente Hosni Mubarak, depois de repetidos confrontos entre protestantes e forças de autoridade, acabaria por ser deposto e decretado um estado de emergência nacional.

Não há aparentemente nenhum indício neste acontecimento capital para a História recente do Egipto que possa estabelecer uma relação directa com a mais recente capa da revista Wire, dedicada à nova e estimulante cena musical do Cairo. Mas Tamer Abu Ghazaleh – que partilha com Maurice Louca, um dos nomes chamados à capa da Wire, o notável projecto Lekhfa, esta quinta-feira em Porto Covo, na noite de abertura do Festival Músicas do Mundo –, acredita que se deve à Primavera Árabe o interesse que, desde então, recaiu sobre a região. Seja mais ou menos verdade, este é, reconhecidamente, um momento particular na cena da capital egípcia. “A música alternativa – que inclui muita coisa diferente, desde o pop-rock à electrónica, à música psicadélica, ao indie e a tudo o que não seja tradicional ou pop mainstream –”, descreve Ghazaleh, “está a tornar-se uma tendência muito forte no país.”

O que quer dizer que, aos poucos, este circuito que há dez ou quinze anos era quase inexistente foi ganhando robustez e hoje possibilita, mesmo que num clima de instabilidade em que aos meses bons podem suceder outros calamitosos, estes músicos consigam profissionalizar-se, em vez de se verem obrigados a todo o género de expedientes para escapar à indigência. Se a internet foi crucial a juntar os movimentos sociais espontâneos que puseram em causa as lideranças políticas dos países árabes, não foi de menor importância para “uma mudança que se foi acumulando entre aqueles que queriam ouvir algo novo e que queriam pôr fim à treta que se ouve todos os dias”, defende Tamer, descobrindo essas sonoridades nos meandros da rede e, em particular, no YouTube.

O projecto Lekhfa – que junta Tamer, Maurice e Maryam Saleh – é filho desse novo cenário do Cairo, cruzando sonoridades que os três admitem resultar numa “mistura muita estranha, desconfortável até”, ao amalgamar registos electrónicos e acústicos de forma pouco convencional. Essa mistura traduz-se, segundo Tamer, na sobreposição de uma felicidade quase eufórica a um sentimento depressivo, reflexo daquilo que os três entendem também ser a natureza de uma cidade como o Cairo, na qual há sempre muita coisa a acontecer em simultâneo. A música de Lekhfa está, por isso, sintonizada com “o trânsito caótico, os carros sem-fim, as multidões de gente por todo o lado, as vozes persistentes de pessoas a gritar isto e aquilo ou o som de coisas a cair”. “Isso faz com que nos sintamos invisíveis no meio de uma tal confusão”, diz o músico.

Lekhfa significa, precisamente, “tornar alguma coisa invisível”. E designa ainda um chapéu que é usado para garantir a invisibilidade a quem o usa. Tamer gosta dessa ideia de que há tantas camadas nesta música que não é possível destapar todos os pormenores que se encontram em cada tema – como se houvesse algo sempre por revelar, mesmo que saibamos onde procurar.

O som da miragem

No reportório de Lekhfa, canta-se sobre festas faustosas realizadas com fundos públicos e que têm por consequência o encerramento de instituições – “recebemos a nossa paga: espera e guerra”, termina o poema de El Shahwa Wel Soaar –, sobre homens que sob o efeito de álcool choram como se fossem crianças, sobre rostos que são roubados durante a noite e se perdem em definitivo. E há ainda, por exemplo, uma canção acerca do “medo do desejo, medo da aventura e medo de que a nossa mente nos leve para lugares que receamos”, descrito a partir da “chávena de chá que se toma no habitual café de rua egípcio”. A normalidade e a sua deturpação medem forças quase a cada verso – como se a descrição dessa normalidade fosse um desafio à sua aceitação e, por outro lado, a estranheza pudesse ser integrada sem qualquer conflito. Com frequência, dizem, as letras escritas integralmente pelo poeta Mido Zoheir transportam nas palavras doses maciças de alucinação – palavras que “acertam em cheio”, garante Maryam, porque “cada frase contém um mar de significados”; ou, propõe Tamer, garante a presença de “uma certa psicose no álbum”.

Toda esta alteridade foi trabalhada pelos três ao longo de quatro anos, desde que primeiro começaram a encontrar-se com vista a criar um projecto comum em 2013. Antes disso, Tamer, Maryam e Maurice eram já músicos com carreiras estabelecidas no Egipto, colaborando com frequência nos discos uns dos outros, ora privilegiando sonoridades mais rock ou mais electrónicas, embora sempre atravessadas por uma pulsação psicadélica, como se todas as suas composições vivessem num estado febril provocado pela temperatura escaldante do deserto. Lekhfa funciona como sobreposição de três mundos já de si muito alinhados e conciliáveis, integra uma sonoridade nas cordas Tamer admite ter trazido consigo da Palestina (onde viveu vários anos) e parece uma miragem permanente, um jogo inebriante e inesgotável entre aquilo que é real e fictício, entre o familiar e o estranho, uma canção árabe trespassada pelo jazz, pelo rock, pela electrónica.

A esta síntese única junta-se a decisão fundamental de cantar as letras de Mido Zoheir, poeta egípcio contemporâneo, cuja linguagem se faz de uma beleza que os músicos dizem ser herdeira das ruas do Cairo e que tem implicações directas nas leituras políticas passíveis de extrair destas palavras, geridas, ainda assim, com o cuidado de quem deveria obedecer ao imperativo legal de submeter as letras a um filtro de censura – sabendo que alguns dos temas nunca teriam sido aprovados, optaram por contornar a questão a coberto da contradição legal oferecida pela dispensa de aprovação defendida pela Constitução do país.

Os tabus sociais abordados em Lekhfa tornariam o projecto alvo fácil da censura. Mas há nessa forma de se esquivar ao controlo uma postura que se estende a toda a música, sempre comprometida com uma expressão totalmente livre. Como se fosse o próprio trio o maior statement político possível de firmar. Em Lekhfa, tudo parece ao alcance de uma mão e simultaneamente fugidio.

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Ruggero Maramotti
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