Manifesto em defesa do conhecimento – o Encontro de Ciência 2018 da FCT

Oiçam, meus amigos, façam coisas que prestem, coisas sérias e úteis, que não sejam apenas fogos de artifício. Façam festas, mas apenas quando a comunidade académica tiver razões de celebração.

Trabalhem para a comunidade académica, e não apenas para a visibilidade mediática. Ser forte em política de comunicação, mas não ter um programa científico consistente, desgasta-nos a todos e é uma deceção. 

Não convertam num totoloto os concursos para projetos de investigação e não façam dos concursos para bolsas de doutoramento e pós-doutoramento uma quantofrenia insana. Não tornem estéril a comunidade académica de ciências sociais e humanas com trabalhos de patrulha, que estraçalham o pensamento, para impor a “ciência da medida”, as “metodologias robustas”, a “ciência objetiva”.

Não façam concursos, com regras de geometria variável, sempre prontas a ser alteradas, à medida que se exprimem não sei que interesses, se políticos, se estratégicos, se seja lá do que for. Veja-se o caso dos concursos para “o emprego científico”. Com regras que andaram por trancos e barrancos, estão agora a ser abertos, um pouco por todo o lado. Mas continuam com razoável margem de indefinição, sobretudo em matéria financeira.

Sejam audazes, promovendo valores tradicionais, em que possamos acreditar: a simplicidade de processos, a lealdade, a fiabilidade, o rigor, a palavra dada.

Cumpram aquilo a que se comprometem: concursos anuais para projetos de investigação de todas as áreas científicas, com resultados que não suscitem dúvidas, e que ocorram no tempo fixado, e não quando calhar, sem que ninguém tome a responsabilidade de coisa nenhuma.

Constituam painéis de avaliação, de unidades de investigação, de projetos e de bolsas, que garantam a diversidade dos paradigmas, respeitem a diversidade das áreas científicas, tenham em atenção as distintas comunidades linguísticas.

Tomem a sério as dotações financeiras, estabelecidas para as unidades de investigação, à saída das avaliações. Não façam delas uma caricatura e um demónio caprichoso, porque apenas existem no papel, por certo para efeito no espaço público e para as estatísticas e os rankings. Aliás, como planear o que quer que seja, quando as unidades apenas dispõem de orçamento em abril e nunca sabem se em outubro lhes não é cortado o financiamento?

Promovam o mérito. Mas antes de mais, reconheçam-no a quem o tem. Que o mérito não seja nunca discricionário, tortuoso, ou duvidoso.

Tenham um compromisso com a língua portuguesa, a qual, sendo uma língua de culturas e de pensamento, deve ser também uma língua de conhecimento, e ainda uma língua de comunicação da ciência.

Tenham um compromisso com o espaço lusófono, como espaço transcultural e transnacional, múltiplo e diverso, de culturas, artes e ciência, um espaço de língua portuguesa, hoje com mais de 250 milhões de pessoas. 

Consultem a comunidade académica, que é uma realidade nacional, e não apenas uma realidade lisboeta, confinada a círculos cada vez mais restritos de comunicação.

Façam dos conselhos científicos da FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia] comissões úteis de aconselhamento das políticas, que exprimam os anseios da comunidade académica. Reúnam-nos regularmente, e não apenas na abertura de uma legislatura, no meio da legislatura, e possivelmente no fim da legislatura.

Não trabalhem com agendas científicas, que a comunidade académica nunca discutiu, porque nunca lhe foi dada a possibilidade de as discutir.

Não trabalhem para clientelas, diferentes das do passado, mas igualmente clientelas.

Não se refugiem nas Comissões Coordenadoras de Desenvolvimento Regional, para tornar ainda mais periféricas as periferias, fazendo com que os centros de investigação das regiões amarguem com um caderno de investigação marginal e rilhem a côdea de financiamentos com impacto, medido sempre pelo superior interesse “do desenvolvimento regional e da criação de empregos”.

Não há como não renegar nas ciências sociais e humanas as celebradas e entronizadas “cadeias de valor” (sempre e apenas financeiro e económico); assim como a excelência e a qualidade, de não sei que calibre, porque nos remetem tão só para a alquimia dos “rácios de fator de impacto” e para os rankings.

A competitividade e o empreendedorismo nada têm a ver com o sentido do trabalho académico, cuja razão de ser se encontra na cooperação, e não na competição, na construção de comunidades humanas e científicas, e não na barbárie do empreendedorismo.

Deixem-se disso, meus amigos. Porque o conhecimento, a investigação e a Universidade não são essa indecorosa ida ao pote, por tamanha sede e intempestiva pressa, como se tudo tivesse um preço e não se olhasse a meios para o atingir.

É tarefa do conhecimento, da investigação e da Universidade aprender e ensinar a ver, e também aprender e ensinar a pensar.

Já era assim que Nietzsche concebia a natureza da atividade académica, em finais do século XIX. E Ortega y Gasset não pensava de modo diferente, na primeira metade do século XX.

Aprender e ensinar a ver, ou seja, habituar os olhos à calma, à paciência, a deixar que as coisas se aproximem de nós. Aprender a adiar o juízo. Aprender a rodear e a abarcar o caso particular, a partir de todos os lados.

E aprender e ensinar a pensar. Ou seja, aprender e ensinar uma técnica, um plano de estudos, uma vontade de mestria. Porque o pensar deve ser aprendido como é aprendido o dançar – exatamente como um passo de dança.

Meus amigos, sem dúvida alguma que a ciência deve de ser motivo de celebração. Mas o que ela não pode nunca é andar equivocada.

 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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