A Bienal de Berlim declarou guerra

A guerra anunciada é um transformação da linguagem utilizada para falar de arte, uma linguagem inspirada pelas ciências sociais, em particular os estudos pós-coloniais e de género.

10ª Bienal de Berlim, Museu de Arte, Arte
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Uma instalação monumental da artista Dineo Seshee Bopape Timo Ohler
Sondra Perry, 10ª Bienal de Berlim, Instituto Kunst-Werke de Arte Contemporânea, Arte Contemporânea
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Sondra Perry: humor e dissonâncias estéticas Timo Ohler
10ª Bienal de Berlim, Berlim, Arte
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Belkis Ayón: invenção de uma iconografia mística de um culto feminino Timo Ohler
Instituto Kunst-Werke de Arte Contemporânea, Bienal de Veneza, 10ª Bienal de Berlim, Arte, Arte Contemporânea, Bienal
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Grada Kilomba: demolir estruturas sociais arbitrárias assentes na violência Timo Ohler

Quando a curadora sul-africana da Bienal de Berlim, Gabi Ngcobo, chegou à conferência de imprensa de óculos escuros com a sua equipa de curadores guerrilheiros associados (Thiago de Paula Souza, Nomaduma Rosa Masilela, Yvette Mutumba, Moses Serubiri), qual Black Panthers, percebeu-se que a linguagem seria de combate: "Nós estamos em guerra", declarou.

Com a discussão que se seguiu percebeu-se melhor o programa estratégico desta edição em que o texto de apresentação é de uma cautela extrema. A imprensa estava preparada para transformar esta manifestação na bienal da descolonização, com uma maioria esmagadora de artistas ligados à diáspora africana, caribense e sul-americana (e um recorde de 72% de mulheres na lista dos artistas). Os curadores começaram então por recusar definições: "Somos todos pós-coloniais", afirmou a curadora para lembrar que estamos inseridos numa realidade que atravessou um processo de desumanização radical, para o qual não há volta atrás e que actualiza os seus efeitos sob outras formas. "É problemático considerar que os artistas da Bienal são descobertas apenas porque na Europa não são conhecidos. Nós conhecemo-los, eles conhecem-se a si próprios e nos seus países de origem", acrescentou.

Mas a guerra anunciada é sobretudo um transformação da linguagem utilizada para falar de arte, uma linguagem inspirada pelas ciências sociais, em particular os estudos pós-coloniais e de género (na versão actual do feminismo, recusando qualquer identidade uniformizada). A curadora Gabi Ngcobo afirmou a necessidade de descolonizar e de levar a cabo um trabalho para desfazermos identidades, questionando construções históricas estabelecidas. Este princípio de recusa surge logo no título da Bienal, We don’t need another hero (citando Tina Turner numa canção numa perspectiva de auto-determinação), e prolonga-se no programa de actividades (intitulado "Eu não sou o que tu pensas que eu não sou", perturbando qualquer posição fixa). Não há bienal de arte contemporânea que não cite actualmente Fred Moten, poeta e investigador na área dos black studies (autor de The Undercommons com Stefano Harney). "Quando Fred Moten fala de comunidades fugitivas, com raízes na segregação, trata-se de elaborar um plano de fuga enquanto processo de subjectivação. Quer dizer, foge-se para fugir, não para atingir uma promessa de utopia. A ansiedade de chegar à promessa é na realidade a vontade de ser capturado, mas o mundo continua, as batalhas deslocam-se", como diz a artista Jota Mombaça.

O tom de guerrilha poderia levar a pensar que esta bienal privilegiaria os discursos às formas. Não é o caso. Há momentos fortes: a surpresa de descobrir as pinturas abstractas em madeira da afro-americana Mildred Thompson (1936–2003) ou a forma como Belkis Ayón (1967–1999) inventa uma iconografia mística para a sociedade secreta cubana Abakuá, introduzindo um culto feminino. Mas esta edição é bem comportada, estudiosa e por vezes convencional. Oscar Murillo, um dos raros artistas expostos associado ao mercado da arte, bem pode explicar que a sua escultura intestinal já não digere os excessos do mundo, expulsando os humanos mas celebrando a livre circulação dos produtos; a Bienal parece querer posicionar-se do lado do bem, aquele que tem sempre razão. Não é de espantar que as obras mais perturbadoras sejam as que integram auto-crítica, humor e dissonâncias estéticas, como o vídeo da Sondra Perry fazendo um paralelo cáustico entre tipologias de jogadores de basquetebol (nos jogos de consola) e as classificações praticadas por museus ditos universais em relação a artefactos pilhados em África. A instalação vídeo marcante de Grada Kilomba (com a participação de Kalaf Epalanga como actor) lembra como uma voz doce pode demolir de forma radical as estruturas sociais arbitrárias assentes na violência - neste caso envolvendo o complexo de Édipo, mito "branco" perpetuando uma noção isolacionista de família. No meio das ruínas da instalação monumental da artista Dineo Seshee Bopape, inspirada num romance de Bessie Head sobre o mergulho na loucura de uma mulher colonizada, vê-se o rosto de Nina Simone, que gerou comoção, dizendo durante um concerto: "É impossível imaginar que possamos chegar à situação que faz com que esta canção se torne necessária".

A Bienal de Berlim declarou guerra mas está sobretudo numa encruzilhada - como desfazer identidades quando é necessário lembrá-las para desencadear processos de emancipação? Falta para tal a capacidade de imaginar futuros desconhecidos.

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