O que se decide em casa antes do fogo pode depois salvar vidas

Comunidades devem aprender a interpretar o fogo, empreender acções para proteger pessoas e bens. "E quanto mais remotas estiverem, mais esse trabalho tem que ser feito". Especialistas sul-africanas estiveram em Monchique e na Lousã reunidas com populações e autarquias.

Foto
nelson garrido

Se há uma onda de assaltos a casas em determinada zona, é normal que quem ali viva redobre os cuidados ao fechar janelas e portas, fique mais atento aos sinais de alarme, que, de alguma forma, tente prevenir o mesmo de acontecer consigo. Porque é que não se faz o mesmo com os fogos? “As pessoas não podem não fazer nada e quando chega o incêndio esperar pelos bombeiros. No caso dos assaltos alguém esperaria que a polícia viesse fechar as janelas?”

A comparação é de Val Charlton, uma das especialistas sul-africanas que na semana passada estiveram nas vilas de Monchique e da Lousã, a convite da Estrutura de Missão para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, para encontrar, com moradores e instituições locais, formas de minimizar o risco de incêndio florestal. Juntar todos na mesma sala (bombeiros, Protecção Civil, GNR, autarquias e residentes, especialmente estrangeiros) foi um primeiro passo. Agora há que trabalhar em conjunto.

Na base está a ideia de que quem que vive em zonas de risco pode ter papel importante na sua própria protecção, se estiver informado e antecipadamente se prepare para o fogo. Devem discuti-lo em família, envolver-se em comunidade. Só assim conseguirão tomar decisões e actuar por si mesmos caso a chamas se acerquem.

“As famílias têm que assumir responsabilidades. E quanto mais remotas estiverem, mais esse trabalho tem que ser feito, porque as instituições não podem estar em todo o lado, nem podem fazer tudo”, afirma Val. O facto de os “incêndios se estarem a tornar maiores e as temperaturas mais extremadas” torna tudo mais premente, completa Tessa Oliver.

Foto
Especialistas consideram que situações como esta, de acumulação de lenha junto às casas, são autênticas “bombas relógio” Fotografia cedida por Tessa Oliver

Val e Tessa são especialistas em conservação da natureza na Landworks, uma empresa de reabilitação e gestão de ecossistemas naturais baseada em projectos comunitários. Trabalham há mais de dez anos com uma metodologia norte-americana de construção daquilo a que chamam aldeias resilientes ao fogo, que aplicaram em países como a África do Sul, o Chile, a Indonésia, agora em Portugal.

Para elas, é evidente que “cada um tem que proteger a sua casa”. Limpar os caleiros, fazer a manutenção de portas e janelas de madeira, não deixar que haja espaços (por baixo das portas, por exemplo) por onde possam entrar fagulhas, para além da limpeza de combustível a pelo menos dez metros dos edifícios.

Os telhados são outro perigo. Não adianta limpar os terrenos à volta, alertam, se o mesmo não for feito nas telhas. É aí que começa a maioria dos incêndios em habitações, não como resultado do calor directo do incêndio, mas devido às fagulhas que consumem folhas e ramos acumulados.

E há cenários comuns no país rural que lhes parecem “uma bomba relógio”, como as pilhas de lenha próximas das casas, que ali secam antes de serem cortadas.

Interpretar o fogo

“Ao terem mais informação, as pessoas têm mais poder, podem fazer coisas. Sentir-se-ão menos como uma vítima da situação e mais parte da solução”, reitera Val Charlton.

Foto
Aldeia da Cerdeira, na Serra da Lousã Fotografia cedida por Tessa Oliver

Esse conhecimento ajudá-las-á a tomar decisões tão complexas como fugir ou ficar. Pois, à partida, não há uma resposta certa. “É uma decisão muito pessoal e que depende muito das circunstâncias específicas de cada incêndio. Por isso é que as pessoas devem conseguir olhar para elas e tomar decisões informadas”, diz Tessa Oliver.

É a transmissão dessa informação do campo científico para as populações que tem falhado, apontam. Pois o fogo, em certa medida, pode ser previsível. “Sabemos que se está um tempo quente, seco e ventoso, o declive é acentuado e existe combustível florestal, vai arder. Mas há ciência que nos diz como: se o combustível é baixo, o fogo vai-se arrastar no solo, em vez de se enfurecer numa floresta de eucaliptos e pinheiros”, detalha Val Charlton. O primeiro passo é conhecer o terreno.

Muitas destas questões dependem da forma como a informação chega às pessoas – se uma pessoa idosa não tem telemóvel, pode a rádio ser uma forma de receber alertas da Protecção Civil? –  antes dos fogos. “Nos incêndios grandes em Portugal, na África do Sul, Austrália, Canadá e nos EUA, muitas pessoas morreram porque fugiram demasiado tarde ou não sabiam para onde ir”, aponta Val. É o que as freguesias com risco de incêndio querem evitar ao definir planos de evacuação e locais de refúgio, uma das medidas do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”, em que também se insere a visita das sul-africanas.

Foto
É nos telhados, não limpos e degradados, que começam a maioria dos incêndios em habitações devido às fagulhas dos fogos florestais Fotografia cedida por Tessa Oliver

Tudo isto exige tempo. Trabalhar em conjunto e chegar a consensos pode ser um desafio. Por isso, parte deste processo começa por “colocar as pessoas numa sala, ouvir o que têm a dizer”, sugere Val.

Os primeiros passos estão dados e Tessa e Val concordam que o “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” é “um muito bom começo”. “Não há muitos países no mundo com um programa nacional como este”, salientam. Mas ainda há muito a fazer num país marcado pela construção desordeira e dispersa, onde o acesso a várias aldeias se faz por vias estreias ou a pé – como acontece para chegar à Cerdeira, uma das Aldeias de Xisto. Muitas das soluções são simples, mas requerem vontade e cooperação. "No fim do dia toda a gente só quer fazer o melhor, mas é tão mais eficaz se o fizerem em conjunto", concluem.

Sugerir correcção
Comentar