Cortar a Rua da Sofia em Coimbra para poder parar, escutar e olhar

À medida que os espectadores de Sofia, Meu Amor, com a direcção do Trincheira Teatro, vão percorrendo uma das ruas da cidade, são convidados a reflectir sobre o património da humanidade

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A Rua da Sofia foi aberta em 1535 na Baixa de Coimbra para ali se instalar a universidade que vinha de Lisboa. A instituição acabaria por se fixar na Alta da Cidade, mas sete dos colégios que nasceram na Sofia sobreviveram até hoje, assumindo as mais diversas configurações e utilizações. Isso não impediu que a importância do conjunto fosse reconhecida em 2013 com a classificação da UNESCO como Património da Humanidade.

É esta a via que serve de cenário, mas também de personagem principal, a Sofia, Meu Amor, a criação que percorre a rua e as suas imediações e que tem direcção de Pedro Lamas e de João Paiva, da companhia Trincheira Teatro. Na tentativa de encontrar um ponto de partida para o espectáculo-percurso que se estreia neste sábado e que tem duas outras apresentações amanhã, Pedro Lamas identifica o paradoxo: “A única constância histórica desta rua é a sua perpétua mudança.”

Cinco anos depois do reconhecimento, a rua mantém as suas circunstâncias, difíceis de definir. Os edifícios que ao longo dos séculos albergaram colégios, ordens religiosas ou instalações militares apresentam, de há décadas para cá, ocupações múltiplas. Pouca habitação, espaços desocupados, algum comércio e instituições. O Colégio S. Tomás de Aquino, por exemplo, é casa do Tribunal da Relação de Coimbra.

É essa ideia que capta o interesse do autor do texto do espectáculo, Jorge Palinhos. “Não é um património estéril, é um património habitado”, o que “vai contra a ideia do património conservado que tem de ter uma certa margem de segurança”. E isso acontece para o bem e para o mal. O dramaturgo queria “explorar o potencial humano e imaginário” da rua. Sofia, Meu Amor procura reflecti-lo. “Não montar directamente o passado histórico ou o que pode ser o futuro”, mas tentar captar “o sonho e a imaginação”, explica Pedro Lamas.

Para tal, fez-se uma radiografia à rua. Sofia, Meu Amor está inserido na Rede Artéria, projecto com fundos comunitários que junta companhias de teatro, instituições de ensino superior e autarquias da Região Centro. O objectivo é levar a cabo criações artísticas focadas nos centros urbanos de matriz histórica de Belmonte, Coimbra, Figueira da Foz, Fundão, Guarda, Ourém, Tábua e Viseu. Cada espectáculo circulará depois por três outros locais, que, neste caso, são: a Guarda, no próximo fim-de-semana; Ourém e Belmonte, nos seguintes. A Rede Artéria tem a coordenação artística da companhia O Teatrão e coordenação científica do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

A pesquisa do CES serviu de base ao trabalho da Trincheira. A investigadora do núcleo de cidades, cultura e arquitectura do centro de investigação, Cláudia Pato Carvalho, explica ao PÚBLICO que a recolha de dados começou há dois anos, no primeiro semestre de 2016, com um levantamento do comércio, serviços e instituições locais. O passo seguinte foi a promoção de oficinas para “motivar as pessoas a envolverem-se no projecto”. O objectivo passava também por incluir os cerca de 50 residentes, algo que acabou por não acontecer.

O ponto de partida surge de um aspecto “inexplicável”. Apesar de a Rua da Sofia ser Património da Humanidade, “não existem roteiros, as visitas de turistas acabam” numa das extremidades da rua. “As pessoas vão à Rua da Sofia porque querem comprar algo, ou ir a algum sítio”, descreve a investigadora, que é também membro da direcção d’O Teatrão. “Falta criar uma relação com a rua. Tens de conhecer o património para depois te relacionares com ele”, aponta. Foi uma dessas conclusões que saiu das oficinas feitas com quem está na Sofia diariamente: “As pessoas identificaram uma necessidade de haver uma dinamização cívica do espaço.” Mas também a necessidade de o conhecer. “Dizeres que é património não significa nada para quem ali habita. Porque não conhecem, porque não foram visitar”, afirma.

Tornar visível

Uma das melhores metáforas com que a Rua da Sofia se explica é a Igreja de S. Domingos, onde decorre uma das cenas. Construída na segunda metade do século XVI, o antigo templo chegou a ser utilizado como garagem e oficina. Nos anos 1980 foi transformada num centro comercial de pequenas dimensões, que ainda hoje lá existe, mas sucessivas alterações do espaço levaram à sua desclassificação de monumento nacional em 2015.

Mesmo os edifícios classificados não se mostram. “Há muita coisa que não é visível na rua. Outras há que as pessoas optam por não olhar”, refere João Paiva. Não olham, mas também o convite para que tal aconteça é tímido. Quem passa pela Sofia “sente que é contranatura parar. O trânsito pedonal ou automóvel não te oferece condições para parar e olhar o património que está à volta, nem a vida que o habita”, completa Pedro Lamas.

O trabalho da Trincheira tenta tornar esse ritmo maleável. Começa por alterar as condições do espaço — o trânsito automóvel é cortado meia hora antes de começar o espectáculo — e tenta dar tempo ao espectador para escutar e olhar, seja a bolha acústica do Terreiro do Marmeleiro, sejam as escadarias ou os claustros escondidos de um dos colégios. O comércio e a circulação pedonal mantêm-se, integrando a peça na forma de um homem de meia-idade que passa com um saco da farmácia ou de um distribuidor de gás que interrompe uma cena com uma botija às costas. A ideia é que o teatro não interrompa a vida como ela é, mas que a absorva.
Aos actores da Trincheira juntam-se os alunos das classes d’O Teatrão, do Colégio de S. Teotónio e da Escola Superior de Educação de Coimbra.

 

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