O que revelam os véus

Há outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”, mais atentas aos contextos históricos, recusando simplismos e essencialismos, menos politizadas, mas sem deixar de ser políticas. Talvez sejam menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas são certamente mais rigorosas e humanas

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Marc DEVILLE/Gamma-Rapho via Getty Images

Polícia da fé, polícias da moda

Na Bulgária, a desagregação do império soviético criou novos problemas de administração pública de modalidades de culto e expressão cultural, durante décadas remetidas para o espaço privado e, em muitos casos, fortemente vigiadas e constrangidas, senão mesmo violentamente suprimidas. O caso da heterogénea população muçulmana, com uma presença significativa e secular no território, é exemplar. Exemplar é também a problemática relacionada com o uso do “véu” pelas jovens muçulmanas, no que nos diz sobre o facilitismo interpretativo com que muitas vezes se abordam certos processos e práticas sociais. Por exemplo, essa opção significou e pode significar a procura por uma identidade individual autónoma, distintiva, de natureza política, social ou religiosa. Pode ser um rito de passagem em universos sociais distintos. Ou um símbolo de inscrição “urbana” e recusa de uma vinculação simbólica e material ao mundo rural. Nada que incomode quem não hesita, nem hesitou, a equacioná-lo com uma identidade histórica colectiva, sem fissuras.

A tensão entre o domínio da expressão individual, relativamente livre, e as tentativas de imposição de um sentido político e cultural unívoco, mais amplo e profundo, é evidente. Isso não impede que muitos dos mais acérrimos proponentes e oponentes do uso do véu ignorem, de modo recorrente, o primeiro aspecto. Opções estilísticas — simplificando, uma escolha entre a minissaia e várias formas de encobrimento — tendem a ser tomadas ora como símbolos de um “ocidente” decadente e desorientado ou de um “oriente” atávico e despótico. São vistas como expressões de (i)moralidade, de identidades colectivas concorrentes, cristalizadas por uma trajectória histórica sem espinhos. Tornaram-se poderosas armas de arremesso político, como se detivessem alguma propriedade mágica para transformar realidades políticas e socioeconómicas desagradáveis. Como se não fossem também formas de expressão individual decorrentes de uma miríade de motivações. Num contexto de gradual integração europeia da sociedade búlgara, com várias transformações sociais, políticas e económicas associadas, estas questões tornaram-se ainda mais visíveis.

Um caso singular protagonizado por duas adolescentes em Smolyan, junto à fronteira com a Grécia, espoletou um debate nacional em 2006. Perante a sua vontade em juntar um hijab ao vestuário escolar, foram proibidas de o fazer, por autoridades locais e nacionais. Em razão da sua persistência e do envolvimento de organizações não governamentais, como a União para a Cultura e Desenvolvimento Islâmicos que se dirige essencialmente aos pomaks (descendentes de búlgaros que se converteram ao islão durante o domínio otomano), o ministro da Educação apropriou-se do argumentário esgrimido em França para sustentar a sua posição. Uma queixa foi depositada na comissão búlgara de protecção contra a discriminação. Como em muitas outras situações, a linguagem dos direitos humanos e da liberdade de expressão foi usada como justificação pela União para contrariar a interdição do véu.

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Raparigas búlgaras durante um casamento na localidade de Ribnovo, de maioria pomak, descendentes de búlgaros que se converteram ao Islão durante o domínio otomano Jana Cavojska/SOPA Images/LightRocket/Getty Images

Após décadas de políticas de “assimilação” forçada e de limitação religiosa por parte do regime comunista, o problema era colocado como sendo de liberdade. Os direitos religiosos sobrepunham-se aos direitos das mulheres. O problema da igualdade de género emergiu nos debates, mas foi consistentemente desvalorizado pelas partes em disputa. O caso em questão foi aproveitado para promover formas mais comprometidas de pertença religiosa, ou mesmo de reforço de uma visão “purificada” desta. Várias publicações, produzidas para a população pomak, eram claras na afirmação das obrigações morais das mulheres (por exemplo, estrita obediência à hierarquia religiosa e às suas interpretações das escrituras) e na dimensão pecaminosa de não se cobrirem. A polícia da fé era também a polícia da moda. O véu não era apenas um símbolo (como seria a cruz). Acima de tudo era tomada como um dogma religioso e um elemento constituinte de uma relação individual com o divino. A estrita observância a ambas, para além do mais, significava a recusa da decadência ocidental, simbolizada pelo uso generalizado da minissaia, inclusive nas regiões pomak.

Como em muitas outras circunstâncias, as forças nacionalistas e conservadoras não enjeitaram a oportunidade. As comunidades muçulmanas seriam as responsáveis pelas árduas condições sociais e económicas que decorreram da “transição” política. A associação da pobreza a regiões pomak (sempre essencializadas de um ponto de vista cultural) foi explorada com insistência. Para gáudio destes e de outros grupos, seguramente desconfortáveis com a comunhão de opinião, em 2006, a dita comissão apoiou a decisão do ministério, chegando a punir a União por incitar à conflitualidade étnica. A possibilidade de banir qualquer símbolo religioso em escolas gerou uma contestação significativa, ironicamente proveniente em larga medida dos sectores cristãos maioritários. Em 2016, a Bulgária baniu o uso público de niqabs e burqas, numa proposta liderada pela coligação nacionalista da Frente Patriótica. O argumento securitário, incluindo o da maior visibilidade dos sistemas de vigilância pública, foi avançado como fundamental. O que foi prontamente disputado, entre outras vozes críticas, pela Amnistia Internacional, que considerou a medida uma clara violação dos direitos da mulher à liberdade de expressão e de religião. De pouco serviu.

Nem “robôs islâmicos”, nem “objectos sexuais”

Em 2005, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sancionou positivamente a proibição dos véus nas universidades turcas. Leyla Sahin, oriunda de uma família praticante, confrontou a Universidade de Istambul com a sua vontade de usar o véu na vida escolar. Foi proibida de o fazer, em Fevereiro de 1998, apesar de invocar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, nomeadamente os artigos que garantem a liberdade de profissão de fé, proibição de discriminação e liberdade de expressão. Sahin personificou — tal como, décadas antes, Sule Yüksel Senler, jornalista, activista e autora do romance de culto sobre o assunto Huzur Sokagi (Rua da Serenidade) — o que um especialista intitulou “feminização simbólica da política de direita”. Em 2008, tornou-se parlamentar, como representante do Partido da Justiça e do Desenvolvimento turco (AKP), de Recep Tayyip Erdogan. O apoio do tribunal europeu deveu-se em parte ao facto da conciliação do uso obrigatório do véu por questões religiosas, e enquanto decorrência de liberdade de expressão, com os princípios de igualdade de género, pilar declarado, mas escassamente protegido, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ser vista como improvável.

Também em 2008, o AKP aprovou duas emendas constitucionais, ratificadas pelo então presidente Abdullah Gül, com o objectivo de revogar a proibição do uso do véu no ensino superior e no sector público, que fora decretada pelo Tribunal Constitucional em 1989. Tal ocorreu com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista, um partido de extrema-direita, ultranacionalista. Para regozijo do principal opositor político do processo, o Partido Republicano do Povo (advogado de preceitos secularistas e que encarava as emendas como demonstração dos verdadeiros objectivos do AKP, ou seja, a islamização do regime político), o Tribunal Constitucional anulou essas emendas. Essa decisão, é óbvio, não implicou o esmorecimento do tema. O impasse continuou, sempre num contexto de um ambíguo processo de potencial adesão à União Europeia, que certamente condicionou a “controvérsia do véu”.

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Mulheres turcas perto da ponte Galata, em Istambul. Há usos do véu que procuram o apagamento das conotações religiosas; outros revelam de modo claro o abandono da suposta sobriedade “tradicional” no que diz respeito às cores e padrões Kaveh Kazemi/Getty Images

No seio deste debate, um movimento particular não recebeu o protagonismo que talvez merecesse. Tratou-se de uma iniciativa intitulada “Nós Olhamos Umas Pelas Outras”, que procurou romper com a partidarização calculista do assunto. Fruto de uma coligação de extracção ideológica diversa, criada precisamente em 2008, entre sectores feministas, grupos LGBT e activistas religiosos (nomeadamente a ONG islâmica Organização para os Direitos das Mulheres Contra a Discriminação), o movimento declarava recusar o conjunto de estereótipos públicos que tornavam as mulheres que usavam o véu ou em “robôs islâmicos” ou em “objectos sexuais”. Ou “ignorantes, fanáticas, maliciosas” ou “exibicionistas, sedutoras”. Num caso, recusavam o racismo associado; no outro, o sexismo. A nota de imprensa era clara: “Nós, mulheres, crentes e não crentes, veladas ou não, mulheres que agem de acordo com os direitos e liberdades das mulheres, nós somos contra os que dizem: ‘Se tu existes, então eu não’.” E continuava: “Nós, as mulheres, rejeitamos o controlo sobre os nossos corpos em nome do modernismo, do secularismo, da república, da religião, da tradição, dos costumes, da moralidade, da honra ou da liberdade.” Uma citação de Hannah Arendt, “Ignorar uma pessoa condu-la a duvidar da sua própria existência”, encerrava o esclarecedor texto.

Sem perder o alcance eminentemente político, a estratégia passava por despolitizar a identidade, não deixando que a discussão ficasse entrincheirada nas antigas disputas entre mundividências “kemalistas” e “islâmicas”. As primeiras, geradas pelo reformismo de Mustafa Kemal Atatürk contra o passado otomano e a favor de uma relativa “ocidentalização” da sociedade turca desde a fundação da República, em 1923, tendem a reduzir a questão do véu a um mero instrumento de incompatibilidade “cultural”. Se nas primeiras décadas da República, marcadas pela abolição do califado e da Sharia e pela chamada Lei do Chapéu, que substituiu o fez ou tarbush, o desvelar era tomado como uma recusa da tradição e do ruralismo empobrecedor, em finais do século, o velamento era tomado como um desafio simbólico à autoridade estatal. As segundas, forjadas na tensa acomodação do islão a um contexto secularista, numa sociedade maioritariamente muçulmana (sunita), tendem a interpretar e a promover o velamento como demonstração clara de lealdade religiosa e compromisso cultural. Talvez seja um truísmo necessário dizer que, ao longo do tempo, o significado e as práticas do velamento mudaram consideravelmente. Há usos do véu que procuram o apagamento das conotações religiosas. Outros revelam de modo claro o abandono da suposta sobriedade “tradicional” no que diz respeito às cores e padrões.

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Joan Wallach Scott, The Politics of the Veil (Princeton University Press, 2007)

Este movimento feminino procurava evitar deixar-se prender no atoleiro do “choque de civilizações” e da política do medo e do controlo social. Mas o delicado encontro de opiniões por parte dos sectores coligados enfrentou vários desafios. E soçobrou. A pressão de sectores religiosos ultraconservadores contra o envolvimento da comunidade LGBT no movimento foi um deles. Outro foi o apoio que alguns dos grupos muçulmanos que dele faziam parte concederam às intoleráveis palavras de Selma Aliye Kavaf contra a homossexualidade, proferidas em 2010, enquanto era ministra dos Assuntos das Mulheres e da Família pelo AKP. Estes factores, entre outros, resultaram na marginalização do “Nós Olhamos Umas Pelas Outras” no interior do movimento feminista, predominantemente kemalista. Mas o seu insucesso não deve implicar a desvalorização do que mostraram ser concebível: outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”. Talvez menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas certamente mais rigorosas e humanas.

Fé, piedade, privacidade, disfarce, autodefesa, negação...

Estudos recentes sobre a questão do véu em África revelam aspectos comuns. O significado e o sentido das práticas de velamento variam historicamente, social e geograficamente. Por exemplo, dinâmicas reformistas na educação ou momentos de significativa transformação político-económica suscitam novas codificações e re-significações do seu uso. Essas práticas decorrem ainda de múltiplas motivações e propósitos, muitas vezes reduzidos a interpretações superficiais e facciosas.

Em Zanzibar, onde os usos do véu têm uma longa história pré-colonial e remetem para dinâmicas de distinção social complexas, a revitalização da prática do niqab, em substituição do tradicional buibui, parece estar mais associada a formas de estetização do quotidiano e a mecanismos de preservação da privacidade do que a processos de intensificação de fidelidade religiosa. Nada disto obsta à identificação de um padrão semelhante por todas as regiões com presença muçulmana significativa em África e pelo Médio Oriente, demonstrando ligações religiosas difíceis de desprezar. A circulação das normas religiosas percorre caminhos similares às das normas e opções estéticas e de estilo de vida, ainda que com algumas diferenças óbvias. Para os refugiados Oromo (oriundos da Etiópia), no Quénia, o véu preto (abaya) também permite mecanismos sociais tendentes à preservação da privacidade. O disfarce possibilita estilos de vida de outro modo menos exequíveis (sair à noite, por exemplo) ou encena uma superficial integração, facilitadora de oportunidades sociais várias num contexto desfavorável e estranho. Tem ainda a vantagem de dificultar a vigilância de agentes etíopes infiltrados nos campos e fora deles. No Senegal, a justificação dos usos do véu pelas mulheres oscila entre a obrigação da fé e o livre exercício de escolha e autonomia individual, num processo de negociação de papéis sociais e familiares. Na Nigéria, os usos do véu resultam de uma tentativa de diminuir a vulnerabilidade social e “moral” das mulheres, sem deixar de estar associado a afirmações estéticas.

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O véu, que não tapa o rosto, o niqab ou a burka passaram a ser uma e a mesma coisa. O mesmo sucedeu com palavras como "imigrante", "árabe" ou "muçulmano". O véu, ao mesmo tempo tempo, unifica e dispersa Artur Widak/NurPhoto/Getty Images

É ainda imperioso acrescentar que, como em muitas outras geografias e contextos, as práticas de velamento não são necessariamente constantes, diárias. Ajustam-se a circunstâncias sociais, às suas recompensas e aos seus riscos simbólicos e materiais. Não podem ainda ser interpretadas como significando a ausência de disputas, por vezes acérrimas, no interior de comunidades muçulmanas sobre os pressupostos e o impacto do uso do véu. Este último é por vezes objecto de fortíssima contestação, em função de posições sociais ou diferentes pertenças étnicas, por exemplo. As distinções entre mundos urbanos e rurais é a este respeito muito importante. Acresce ainda que as práticas de velamento não parecem determinar, em si mesmo, qualquer grau de autonomia ou dependência social das que as observam. Ler nelas, necessariamente, expressões de total independência ou, pelo contrário, de subjugação é escassamente confirmado pelas investigações empíricas disponíveis. O riquíssimo livro colectivo coordenado por Elisha P. Renne, Veiling in Africa, é esclarecedor em todos estes sentidos. As modas e as práticas do velamento resultam de relações dinâmicas, por vezes paradoxais e amiúde pouco claras, entre religião e política, “ética e estética”, “piedade e beleza” e “sobriedade e atracção”. Entre relativa autonomia e submissão, podemos acrescentar. Tudo isto atravessado por dimensões geracionais, educacionais, económicas, de estatuto social, entre outras.

Com notórias diferenças, só compreensíveis quando descemos aos contextos locais e os compreendemos comparativamente e na sua intersecção com processos que os extravasam, muitas das dinâmicas de descarada instrumentalização política e de distorção interpretativa identificadas nestes três casos são comuns a muitos outros associados à questão do velamento.

As “novas” mulheres “novas”

Foi contra estas tendências que Joan Wallach Scott escreveu The Politics of the Veil (2007). Figura central da historiografia contemporânea, não apenas por ter insistido na centralidade da questão de género na problematização histórica, Scott debruçou-se sobre a intensa polémica que se instalou em França, em 2004, a propósito do uso do véu nos estabelecimentos escolares. Insuspeita de qualquer simpatia pela prevalência de sociedades patriarcais e reconhecidamente empenhada na luta contra as desigualdades de género, a autora obriga-nos ao desconforto de repensar respostas fáceis a problemas complexos. Desde logo, recusando um uso essencialista e a-histórico dos conceitos. Por exemplo, a usual distinção entre “tradição” e “modernidade” que acompanhou todo o debate é solidamente questionada. É-o com recurso a um exercício simples, mas em grande medida ausente neste debate público: como é que as adolescentes que pretendiam usar véu nos espaços públicos justificavam a sua decisão? Ao contrário do que se possa pensar, muitas delas faziam-no contra a vontade dos pais e dos círculos familiares próximos. Outras porque encontravam no gesto a recuperação de uma espiritualidade que julgavam perdida. As motivações não eram homogéneas.

Essa recusa de se enredar em essencialismos não resulta apenas de uma razão heurística: ela existe porque o uso de abstrações decorre de lógicas de natureza política, eivadas de nacionalismo e discriminação. A necessidade de evitar acusações de discriminação numa base étnica ou religiosa fez com que o próprio articulado da lei de 2004 proibisse o uso de qualquer símbolo religioso ostensivo, potencialmente afectando cristãos ou judeus. Mas a oposição entre laicidade e confessionalismo, que inflamou a opinião pública francesa, respondia claramente à crescente islamofobia no país. Os próprios ciclos de erupção da discussão do véu respondiam a agendas de natureza política orientadas em função da questão muçulmana: a ascensão da Frente Nacional nos anos 80, a possibilidade de um governo fundamentalista argelino nos 90, e o contexto posterior ao 11 de Setembro de 2001. Em todos estes casos, a pressão proveniente da extrema-direita levou, voluntária ou involuntariamente, os sucessivos governos de centro-direita ou centro-esquerda, a incorporar alguns dos argumentos das franjas (o que se está a tornar recorrente nos dias que correm, diga-se).

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BSIP/UIG/Getty Images

O véu, que não tapa o rosto, o niqab ou a burqa passaram a ser tudo uma e a mesma coisa. O mesmo sucedeu com palavras como “imigrante”, “árabe” ou “muçulmano”. O véu, ao mesmo tempo, unifica e dispersa. Os que o usam são fechados numa “comunidade” projectada como inimigo interno e externo, descontrolada, insidiosa. Esses “indesejáveis”, mais ou menos definidos, foram amalgamados num grupo inassimilável, independentemente de sondagens, à época, mostrarem que apesar de a maioria ser contra a proibição, não era necessariamente favorável ao uso do véu. Dispersa, no sentido em que os múltiplos usos quotidianos, as diversas motivações políticas, religiosas, estéticas, os vários condicionamentos económicos e sociais são indistintamente agrupados num único e poderoso símbolo, que tudo explica e determina, “o véu”.

Lendas sobre o secularismo, donde decorreria o compromisso da República com a igualdade de género, foram retroprojectadas no passado, não obstante as limitações ao sufrágio universal feminino até 1945 e a persistência de escolas separadas por sexo até bastante tarde. A guerra “cultural” foi tão longe quanto desvalorizar o problema evidente das profundas desigualdades desenhadas ao longo de linhas raciais e religiosas. Ou ao ignorar que, por exemplo, a melhor forma de combater formas de opressão das mulheres seria precisamente através da escola, a mesma escola que podia agora ser vedada na decorrência da nova lei. Os mesmos que decretam o fim das ideologias em nome de um “choque de civilizações” revelam-se lestos a ignorar as consequências práticas do chauvinismo em marcha.

Entenda-se, a escolha não é entre a apologia do véu e uma qualquer defesa irredutível da “tradição” e, por outro, a interdição de qualquer manifestação de diferença cultural, definida em função de uma “modernidade”, também ela imaginada. Trata-se, antes, de promover um debate política e historicamente informado, onde aos principais visados e visadas lhes seja dada voz.

Centrais nesta história, os legados da França imperial. A articulação da “missão civilizadora” francesa com a edificação de estereótipos e preconceitos em torno da organização familiar, de género e da sexualidade das populações muçulmanas é tão longa quanto a conquista e ocupação da Argélia, na primeira metade do século XIX. As sociedades magrebinas eram tidas como particularmente lúbricas e viciosas. É uma história que se estendeu até à Guerra da Argélia, quando o véu e a poligamia eram apresentados como sinónimos do obscurantismo promovido pelo nacionalismo da Frente de Libertação Nacional. A tutela modernizadora de uma “Argélia francesa” seria a última oportunidade da mulher emancipada. De resto, estas imbricações entre género e diferença cultural podem ser encontradas em muitas histórias imperiais europeias, da abolição do Sati (a prática de queimar viúvas juntamente com os maridos recém-falecidos), na Índia do século XIX, à consolidação de uma representação da família africana como sendo marcada por uma divisão desigual do trabalho, que acabaria por legitimar várias formas de trabalho compelido masculino.

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Quando, em 1927, foi lançado pelo Partido Comunista da União Soviética aquilo que foi designado como o Hujum (ataque) no Uzbequistão, milhares de mulheres foram incitadas a queimar publicamente os seus véus (paranjis) DR

Mas esta não é uma história redutível ao moderno colonialismo europeu. A constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, por exemplo, levantou novos problemas ao recém-constituído governo bolchevique, principalmente nos Estados da Ásia Central. Também aqui, a oposição entre “obscurantismo islâmico” e “modernidade”, especificamente socialista, se manifestou agudamente. A necessidade de criar uma “Vida Nova” com uma “Mulher Nova” tinha de confrontar o putativo atavismo das populações locais. O potencial do “véu” como gatilho simbólico foi calculado. Quando, em 1927, foi lançado pelo Partido Comunista da União Soviética aquilo que foi designado como o Hujum (ataque), no Uzbequistão, milhares de mulheres foram incitadas a queimar publicamente os seus véus (paranjis), iniciativas apresentadas pelas autoridades como actos de livre vontade. Tal supostamente resultava do papel esclarecido que desempenhavam os seus militantes e de uma política mais vasta que pretendia educar e trazer ao espaço público as mulheres uzbeques. Mas, mais uma vez, as subtilezas são cruciais. Antes do lançamento do Hujum já algumas mulheres se tinham mobilizado para largar os seus paranjis, fazendo parte de um grupo mais vasto de reformadores sociais e clérigos que entendiam que o uso do véu representava uma distorção da Sharia. Aliás, como sucedia ao mesmo tempo em movimentos similares, patrocinados pelo Estado em países como a já referida Turquia, o Irão ou o Afeganistão. A luta das autoridades soviéticas não era apenas contra o mullahs conservadores, mas também contra estes proponentes de uma “modernização” diferente. A afirmação do poder do novo Estado soviético não foi um factor de importância desprezável nesta batalha pela “secularização”, que envolveu coacção e violências várias que obrigaram mulheres a queimar os seus paranjis em cerimónias públicas (sendo que muitas delas logo o voltaram a usar, pelo menos em privado). Com violência responderam também clérigos e homens uzbeques que, no rescaldo da Hujum, assassinaram mais de 2 mil mulheres que tinham largado o véu.

A tentação de criar uma “mulher nova” não foi, no entanto, exclusivamente socialista ou colonial. Nem foi sempre uma forma de imposição de normas sociais pelo Estado. No contexto da Coreia ocupada pelo Japão no início do século XX, a afirmação da mulher num espaço em profunda transição, tanto nos campos como nas cidades, graças às políticas imperiais de modernização e de abastecimento alimentar da metrópole, assumiu contornos de particular relevo, especialmente em face do importante cisma em torno da soberania coreana. Por exemplo, nos anos 20, quando algumas mulheres coreanas decidiram adoptar um corte de cabelo curto (bobbed air) como forma de afirmação do seu espaço social, foram visadas pelas críticas tanto dos nacionalistas coreanos, que as acusavam de distorcer os papéis tradicionalmente atribuído aos géneros e com isso colocar problemas à afirmação nacional, como de uma estranha coligação entre estes e as autoridades imperiais japonesas, unidos pelo temor à ocidentalização. As disputas estendiam-se a outros aspectos, do controlo da natalidade e das práticas de casamento precoce à produtividade das mulheres, passando pela multiplicação de folhetins eróticos na sociedade coreana. Nacionalistas anticoloniais e imperialistas, de formas e com resultados diferentes, não deixaram de mobilizar um importante aparato retórico que essencializava factores culturais como legitimadores de um determinado lugar social da mulher.

Em suma, a interconexão entre aquilo que é esperado serem os papéis do género e os discursos sobre a “tradição” e a “diferença cultural” tem uma profunda história, e manifesta-se globalmente, em diferentes contextos. Num momento em que termos como “integração” e “assimilação” parecem ganhar nova vida, apesar do seu passado questionável, estudar a história desta relação, os seus usos instrumentais, o carácter poliédrico das disputas que cada um deles encerra, pugnar por uma visão democrática que, sem descurar princípios, não ignore as consequências práticas de cada medida, recusar essencialismos e realmente escutar aquelas que mais têm a perder (e a ganhar), talvez não seja pedir demais.

Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra.

Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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