Eutanásia: “Igreja e sociedade civil têm de se preparar para o que vem”

O bispo admite que a questão da eutanásia voltará em breve a ser discutida pelos partidos políticos. E sobre a questão dos recasados diz que o seu envolvimento na Igreja é "um itinerário, não se limita a um sim ou não imediato"

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Congratulou-se por a lei da eutanásia não ter passado no Parlamento e considerou que exprimia o sentir geral dos portugueses. O que virá aí quando a discussão regressar, quando os partidos a inscreverem nos programas eleitorais?

Os partidos preparam-se para o que vem, a igreja e a sociedade civil também têm de se preparar para o que vem, de outra maneira, naturalmente. 

A questão da eutanásia não é exclusivamente confessional, como às vezes se pode apresentar. Isso ficou demonstrado, por exemplo, através do pronunciamento da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Farmacêuticos e do próprio Partido Comunista, que tomou, a meu ver, uma posição muito humanista.

Isto mostra, à evidência, que não é uma questão meramente religiosa. Engloba toda a sociedade e toca naquilo que é o mais profundo da vida, o termo da nossa vida.

Buscamos uma alternativa. Conhecemos o que é o sofrimento, não podemos negar esse aspecto pelas quais as pessoas passam, mas entendemos que a eutanásia não é a solução, que não é eliminando a pessoa que se elimina o sofrimento, há outras maneiras de o fazer e, por isso, somos pelos cuidados paliativos. O que falta é uma rede organizada e ampla dos cuidados paliativos,  e não só do ponto de vista da medicina e das tecnologias, mas também dos pontos de vista humano e espiritual. Às vezes há uma confusão de termos e definições: fala-se da eutanásia como morte assistida, não é a mesma coisa. Toda a gente quer uma morte assistida, seja pela medicina, pela proximidade e afecto humano, seja pelo apoio espiritual.

Este não foi também um debate da afirmação da individualidade?

Temos de compreender que estamos no campo também do jurídico, não apenas da liberdade do indivíduo. O jurídico tem uma dimensão e uma proporção também familiar. A liberdade do indivíduo, a nível jurídico, não pode ficar separada das repercussões que uma lei destas também tem a nível familiar, cultural, social.

O que me choca é a banalização da cultura da vida humana na escala de valores e a banalização da cultura do descarte.

É a questão do valor da vida?

Sim. Isto é uma rampa deslizante, como tem acontecido nos outros países, e pode ter consequências ao nível das relações familiares. A gente mais idosa que sofre, até porventura com um sofrimento que não é do mais extremo, pode sentir que está a ser pesada para a família, a ser considerada como inútil e pode ser induzida a comportamentos como ‘é melhor que eu morra’.

Como recebeu o sim no referendo do abordo na Irlanda? É um corte com a Igreja?

A Irlanda foi um país católico, mas como certamente aconteceu em Portugal, foi um catolicismo sociológico que assentou na tradição cultural mas não numa fé interiorizada e pessoal. É também o que estamos a assistir no Ocidente. É um facto que não podemos ignorar, mas é também um desafio e uma oportunidade para um novo enraizamento da fé, deixar de ser por mera tradição – na linguagem popular, ‘maria vai com as outras’, como era antigamente - para ser algo personalizado e convicto.

Estranhamos um país dito católico como era a Irlanda mas esta é a realidade e não podemos fechar os olhos e a Igreja na Irlanda é desafiada nessa mudança.

Ao fim de uma década da lei do aborto, Portugal é o país da Europa com menos abortos. Esse é um balanço positivo?

Do mal, o menos, como se costuma dizer. Se é o país com menos abortos é um aspecto positivo. Não devemos é ficar por aí. Temos de trabalhar nas causas que levam ao aborto, como a falta de apoio económico. Aqui na diocese criámos um serviço de apoio às mães em dificuldade. Ainda não teve muita procura. 

Isso não é bom?

Não sei, dependia de um estudo dos vários casos que tenham aparecido, das opções que fizeram. Às vezes dá a impressão que há mais facilidade para fazer o aborto do que para levar a gestação até ao fim. Temos de fazer algo por isso e não ficarmos apenas com a satisfação de termos o menor número de abortos, mas fazer todo o possível para ajudar as mães em dificuldade, sobretudo promover a natalidade. Estamos a viver o inverno demográfico e dentro de anos vai-se reflectir de maneira impressionante em diminuição do número de habitantes - é assustador descer de dez para seis milhões de habitantes em 2050.

Viu então com bons olhos o anúncio do Governo de um novo pacote laboral que procura conciliar o trabalho e a família?

Tudo o que seja conciliar tem de ter o nosso apoio. Hoje as empresas caminham para horários flexíveis, também através das novas tecnologias isso é possível. Mas é preciso mais ainda, mais apoios, porque isto diz respeito a todos, se não ficamos uma sociedade envelhecida. Isso vai repercutir-se nos anos vindouros, na incerteza do futuro e das pensões.

A nota pastoral da sua diocese para os divorciados em nova união segue de muito perto as orientações do Papa Francisco.

Sim, segue.

Com a publicação das notas pastorais das várias dioceses, ficamos com a ideia que haverá um tratamento diferente consoante as dioceses e com a dúvida se haverá padres com tempo disponível para cumprir o que se propõe.

Isto é um itinerário, um caminho de discernimento que não se limita a um mero colóquio, a um sim ou não imediato. É para a pessoa que quer viver a sua fé numa boa relação com Deus e com a Igreja. Cada caso é o seu caso, as pessoas têm um caminho de progresso na fé. Encontrei gente santa, para quem não é preciso um itinerário demasiado longo, outros vão fazendo o seu caminho, progredindo, descobrindo as formas de maior inserção. Eu pus lá: em ordem a uma maior inserção, porque estão inseridos na igreja, não são excomungados.

Temos de ter padres disponíveis. Tenho também uma equipa de serviço de apoio a estas famílias. A pessoa ou o casal escolhe o padre da sua confiança que acompanhe. Por fim, a decisão final é da consciência da pessoa.

Tem padres para fazer esse serviço ou leigos com formação podem ser chamados?

Eu ainda não optei por ir por aí porque o Papa diz ‘um itinerário pessoal e pastoral’. Mas podem ser simultaneamente acompanhados por famílias que ajudem também nesse caminho. Não se opõe uma coisa a outra. Famílias com experiência de fé e de vida podem muito bem ajudar e aconselhar e iluminar o caminho.

Tem conhecimento quantas pessoas podem vir a fazer este caminho na sua diocese?

Não tenho. Quando o documento estava a ser elaborado conheci um caso: um padre veio ter comigo a perguntar-me se podia [acompanhar] e eu disse que sim. Uma vez que aquele documento dos bispos da região de Buenos Aires foi aprovado pelo Papa, assumido como magistério autêntico, já tínhamos na nossa mão o magistério do Papa para abrir o caminho.

E os padres na sua diocese vão ter que tempo?

Vamos ter tempo. Não vamos ter demasiados casos, não pense que vai ser uma enchente. Muitos em nova união não se interessam por isso. Mas eu pus lá a pedir que, nas comunidades, sensibilizem as pessoas que estão nessa situação, fazendo-lhes conhecer esta oportunidade. Também temos de fazer isso, não é só esperar pelos que vêm.

Não sei se deu conta que o documento [de Leiria-Fátima] foi feito em forma sinodal, foi enriquecido por várias mãos, vem lá na nota que partiu da reflexão dos bispos do Centro e depois foi aos vários conselhos da diocese para que o sentissem como seu, que não era uma coisa apenas do bispo, de alto para baixo, mas assim que o abraçassem todos e isso é muito bom.

Tem ideia que os documentos que têm saído colocam às pessoas possibilidades diferentes consoante as dioceses onde estão?

No essencial todos concordamos. Por exemplo, nós, os bispos do Centro, fizemos a nossa reflexão, um esboço do documento para depois cada um o adaptar na sua diocese. Estamos todos de acordo naquilo. Pode haver alguma nuance, pequena, mas no fundo estamos de acordo.

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