Tribunal Europeu dos Direitos Humanos dá razão a Carlos Cruz

Trata-se de uma decisão “revolucionária para o direito português”, considera advogado do apresentador. Juízes de Estrasburgo votaram divididos e consideraram que justiça não foi demasiado morosa no processo Casa Pia. Portugal ainda não decidiu se recorre.

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Carlos Cruz RUI GAUDêNCIO/Arquivo

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu parcialmente razão ao apresentador Carlos Cruz no que diz respeito à aplicação da justiça no processo Casa Pia.

Não se pronunciando sobre os abusos de menores que a justiça portuguesa entendeu terem sido cometidos por este e outros arguidos do processo – esse não era o objectivo –, os juízes de Estrasburgo decidiram que o Tribunal da Relação de Lisboa devia ter aceitado analisar novas provas quando Carlos Cruz ali apresentou recurso, o que não sucedeu. Para o advogado do apresentador, Ricardo Sá Fernandes, trata-se de uma decisão “revolucionária para o direito português”, uma vez que os tribunais de segunda instância se limitam a verificar se os juízes que os antecederam, na primeira instância, aplicaram a lei da forma mais correcta. “Nunca aceitam novas provas”, sublinha o mesmo advogado, para quem o seu cliente teve, por essa razão, “uma vitória absolutamente extraordinária”.

Não foi, porém, uma vitória plena: quer porque três dos sete juízes europeus, que votaram vencidos, entenderam não se verificar neste aspecto qualquer violação da Convenção dos Direitos Humanos, quer porque as restantes queixas de Carlos Cruz não tiveram sucesso. Entre outras coisas, diziam respeito à impossibilidade, durante o julgamento de primeira instância, de confrontar as vítimas com as declarações que tinham prestado às autoridades durante a fase de investigação do caso, uma vez que houve depoimentos que mudaram ao longo do tempo. Neste ponto não ficou provado que o apresentador não tenha tido direito a um julgamento justo, o mesmo sucedendo com Ferreira Diniz, Jorge Ritto e Manuel Abrantes. 

Os juízes consideraram ainda que dada a extrema complexidade do processo não podem ser considerados excessivos os seis anos que durou o julgamento principal em primeira instância: "Embora possa parecer demorado (...), o tribunal ouviu 920 testemunhas, 19 consultores, 18 peritos, 32 vítimas e sete arguidos, tendo analisado 64 mil páginas de documentação", recordam.

Por outro lado, entendera, não se justificar obrigar o Estado português a indemnizar Carlos Cruz pelo facto de o Tribunal da Relação de Lisboa não lhe ter permitido juntar novas provas ao processo: “A mera constatação de uma violação dos direitos humanos já proporciona, por si só, uma satisfação justa e suficiente pelo dano não pecuniário sofrido." Como tinha vindo a anunciar desde a condenação do apresentador — que foi sentenciado a seis anos de cadeia, dos quais cumpriu dois terços —, Ricardo Sá Fernandes vai tentar reabrir o caso judicial em Portugal com base na sentença divulgada nesta terça-feira pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Os magistrados de Estrasburgo recordam a forma como Carlos Cruz tentou, por três vezes, juntar novas provas ao processo, sem conseguir - nomeadamente cópias de entrevistas dadas à comunicação social pelo motorista da Casa Pia, o arguido Carlos Silvino, por duas vítimas e por duas testemunhas, bem como um livro entretanto escrito por outra vítima. Argumentava que chocavam com declarações que os próprios tinham feito em julgamento. 

Mas o Tribunal da Relação de Lisboa não só lhe negou essa possibilidade como também a repetição da audição de testemunhas, vítimas e arguidos. Alegou que se tinha esgotado o prazo para tais diligências e que, por outro lado, esses elementos de prova não se revelavam pertinentes. Os magistrados de Estrasburgo não entenderam o mesmo: a análise destes documentos e a audição de novas testemunhas eram "susceptíveis de pôr em causa o acórdão proferido" em primeira instância, e a sua análise podia ter beneficiado o arguido, observaram. O facto de o terem privado disso mostra-se, neste particular, "incompatível com os requisitos de um julgamento justo", refere o acórdão proferido esta terça-feira. 

Algumas das pessoas que Carlos Cruz insistia que fossem outra vez ouvidas chegaram a enviar cartas ao Tribunal da Relação admitindo ter prestado declarações falsas, que haviam conduzido à condenação de inocentes.

Com a sua decisão, os juízes da Relação violaram, no entender dos seus colegas de Estrasburgo, o sexto artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, segundo o qual "qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, (...) por um tribunal independente e imparcial". Ainda segundo o mesmo artigo, a qualquer pessoa acusada de ter cometido crimes deve ser dado o direito a "interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação". As queixas de Ferreira Diniz, Jorge Ritto e Manuel Abrantes caíram todas por terra: o tribunal europeu não lhes deu razão. 

Entretanto, num resumo do acórdão que colocou online esta terça-feira à tarde, o Ministério Público sublinha que os juízes do tribunal europeu não tomaram posição àcerca da ocorrência de abusos sexuais sobre as crianças da Casa Pia. "Considerou, por unanimidade, que não houve violação do direito a um processo equitativo", e "disse mesmo estar impressionado com o número de sessões realizadas para interrogar e contra-interrogar as vítimas", refere a mesma súmula, chamando a atenção para o facto de apenas ter sido apontada violação da Convenção dos Direitos Humanos numa das cinco questões suscitadas pelos arguidos condenados. 

Questionado sobre se Portugal vai recorrer do acórdão, o Ministério da Justiça respondeu que ainda não decidiu - tal como também não o fez em relação ao ex-ministro do PS Paulo Pedroso.

Já este mês o Tribunal Europeu condenou o Estado português a pagar mais de 68 mil euros ao antigo governante. O tribunal entendeu que no caso de Pedroso foram violados vários direitos protegidos pela convenção europeia (como o "direito à liberdade e à segurança" e o "direito a indemnização"). E que a detenção e prisão preventiva do ex-governante quando era suspeito de abusos de menores no âmbito do processo Casa Pia aconteceram sem que essas suspeitas fossem plausíveis. “Os argumentos usados para justificar a sua detenção não eram relevantes ou suficientes.” O tribunal considerou ainda que foi negado o acesso de Paulo Pedroso (que esteve preso preventivamente até Outubro de 2003) a peças essenciais dos testemunhos das vítimas que lhe podiam ter sido disponibilizados sem comprometer a identidade dos menores. Eram, afinal, essas peças e testemunhos que sustentavam as suspeitas de abusos que tinham levado à sua prisão.

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