Com Trump e Putin, a política de afectos não funciona

Marcelo está esta quarta-feira no Kremlin e daqui a uma semana na Casa Branca. Álvaro Vasconcelos defende que o Presidente da República deve afirmar perante os dois líderes a coesão das políticas europeias, mas pensa que o russo será mais sensível ao tema que o americano.

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Marcelo já está em Moscovo LUSA/RUI OCHÔA/PR

Marcelo Rebelo de Sousa é recebido esta quarta-feira por Vladimir Putin em Moscovo, antes do jogo Portugal-Marrocos, e uma semana depois estará na Casa Branca a apertar a mão a Donald Trump. No primeiro caso, foi o Kremlin que convidou o Presidente português para um encontro, aproveitando a sua presença no Mundial de Futebol. No segundo, o encontro foi pedido há muito por Lisboa e chegou a estar em risco, acabando o seu agendamento por obrigar o chefe de Estado luso a duas viagens aos EUA em pouco mais de 15 dias.

É uma coincidência, portanto, esta proximidade de datas, e ninguém pense que Portugal, ou o seu Presidente, vai servir de mediador entre Putin e Trump, avisa Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia. Os dois encontros têm agendas diferentes, mas em ambos Marcelo deverá sublinhar a importância do multilateralismo e do comércio livre, sobretudo depois da chamada guerra comercial imposta por Washington com o aumento das taxas aduaneiras ao aço e ferro à União Europeia e a meio mundo, mas não à Rússia.

No Kremlin, o Presidente da República vai querer afirmar o papel de Portugal no mundo e sublinhar as boas relações que tem mantido com a Rússia – mesmo na crise diplomática após o envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal, Lisboa apenas chamou o seu embaixador, mas não expulsou diplomatas. As dificuldades de relacionamento Europa-Rússia em várias áreas e as sanções decretadas após a invasão da Crimeia estarão presentes, mas Marcelo deverá reafirmar ser favorável ao diálogo e a uma melhoria de relações entre os dois blocos, dentro do respeito da ordem internacional.

A reunião na Casa Branca será mais desafiadora, até porque acontece na véspera do Conselho Europeu em que se vai debater a questão das migrações, da segurança europeia e das relações externas. O chefe de Estado, acompanhado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, irá garantir a Donald Trump o empenhamento de Portugal na NATO e não deixará de enaltecer as virtudes da comunidade lusa, num momento em que os imigrantes se sentem ameaçados nos EUA. Mas também irá confrontar a política de guerra comercial decretada pela administração Trump, saindo em defesa da posição europeia e do multilateralismo, como Marcelo tanto tem sublinhado nos seus últimos discursos.

Mas não se espere muito nem de um encontro nem de outro, sublinha Álvaro Vasconcelos ao PÚBLICO. Em particular da reunião na Casa Branca. “O primeiro esforço que devemos fazer é de realismo quanto à nossa relação com os EUA. É uma relação que tem de ser construída no tempo, de uma forma segura, e independentemente dos Presidentes”, começa por dizer. “Onde Portugal tem algum peso é como membro da União Europeia, e aquilo que se espera dos governantes europeus neste momento é mostrarem unidade perante o unilateralismo do Presidente americano e as tarifas que está a impor à Europa, à China, mas também nas questões do Médio Oriente, do Irão. Aí a voz portuguesa conta no sentido de ser mais uma demonstração de que os europeus estão unidos e não estão a tentar encontrar pequenas saídas para se aproveitarem da vontade de Trump de dividir os europeus”, sublinha.

Curiosamente, Vasconcelos considera que Putin poderá ser mais sensível àquilo que o Presidente português, enquanto país da União Europeia, lhe disser. “Trump está numa atitude de não dar importância à UE, mostra desprezo por ela, enquanto Putin, que vive na Europa, é mais sensível à questão europeia. As sanções europeias têm importância, o facto de a Europa ter começado a autonomizar-se estrategicamente dos EUA é vista com algum interesse por parte de Putin e nas questões essenciais – a questão da Ucrânia, a anexação da Crimeia, a Síria, o Médio Oriente – a política militar brutal de Putin tem de ter uma resposta europeia forte”, analisa.

“Putin tem mais noção dos seus limites e do custo que tem para ele uma política de confronto com a UE, pelo que estará mais atento àquilo que o Presidente português disser, relembrando as questões sobre as quais existem clivagens sérias, mas ao mesmo tempo o desejo de a UE encontrar um novo diálogo com a Rússia e o desinteresse total numa bipolarização política, militar e económica”, acrescenta. Quem não tem querido integrar-se, afirma ainda, é o próprio Putin, que “tem demonstrado interesse em voltar ao bilateralismo”.

O que para este especialista é claro é que a política de afectos de pouco ou nada vale com nenhum destes líderes. “Uma política de afectos com Trump, como tentou Macron  – e o peso da França é muito maior que Portugal do ponto de vista internacional – não resulta. Macron fez aquele discurso da política de afectos com o qual pensava convencer Trump a voltar ao acordo de Paris, a não entrar numa guerra económica e comercial com a Europa e não teve resultado nenhum, foi até ridicularizado”, lembra o especialista em assuntos geoestratégicos.

A viagem do Presidente francês aos EUA valeu mais pelo discurso que fez no Congresso, virado sobretudo para os democratas, a jogar com as eleições para as duas câmaras do Congresso em Novembro próximo: “Afirmou o multilateralismo, criticou a saída do acordo de Paris, criticou o unilateralismo comercial e teve um grande apoio do lado dos democratas. Isto é algo que se espera dos governantes e do Presidente da República, que reafirme a mesma linha multilateral”, defende Vasconcelos.

Com Putin, ainda seria pior. “Se as tentativas de uma política de afectos com Trump teve os insucessos que conhecemos, com Putin acho que nunca ninguém tentou nem irá tentar. Não vale a pena”, afirma.

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