Os edifícios de José Adrião não levam ponto final

Espaço público, também muita recuperação, projectos de baixo custo, outros para fundos imobiliários, faz-se de tudo no lisboeta atelier de José Adrião. Liberdade, flexibilidade, mas também imperfeição servem para falar de arquitectura — “porque as arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”.

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rui gaudêncio

Estamos a caminho da Trafaria, vila na margem sul do Tejo quando o rio se encontra com o Atlântico, para visitar uma recuperação feita pelo arquitecto José Adrião para um casal de clientes que simboliza o trabalho que o atelier gosta de fazer. Que se pode sintetizar por uma sucessão de palavras que Adrião rabiscou numa folha antes de receber recentemente um prémio de arquitectura e que agora recorda à laia de introdução de uma das várias obras de baixo custo do seu atelier: “Informalidade, flexibilidade, mistura, imperfeição; procurar a felicidade e não a beleza, actuar sem preconceito.”

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A sala comum na Casa da Trafaria Nuno Almendra

Vamos ver a casa que o atelier fez para Abed Abdeljawad, palestiniano, e Annelien, holandesa, mais os filhos Karam e Emilie, que há três anos aterraram em Portugal vindos de Dublin à procura de um sítio para viver. Ele designer, ela funcionária de uma ONG, pesquisaram no Google Earth e no Google Maps e puseram um “X” sobre a Trafaria. Compraram um pequeno edifício quase em ruína, apareceram no atelier com esta história, disseram à equipa de arquitectos que tinham um orçamento pequeno e que era igualmente importante que o processo de construção corresse sem tensões, que fosse uma coisa
cool. “Só queríamos ter um lugar para dormir e começar as coisas a partir daí”, explica Abed, que nos recebe nesta casa situada na Avenida Bolhão Pato, com os dois filhos pequenos; Annelien está em viagem.

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A família de Abed Abdeljawad na Casa da Trafaria Nuno Almendra

O espaço cheira a férias, sublinha José Adrião, principalmente neste primeiro dia do ano de muito calor, porque a praia está perto, mas também porque é uma arquitectura desenhada para uma vida normal, descontraída. Às camadas do arquitecto — que virou a casa para o pátio traseiro, transformou o piso térreo numa só divisão e ainda conseguiu construir um sótão onde pôs os quartos e a casa-de-banho —, o casal acrescentou a sua camada, como o trabalho que fez no pátio traseiro, depois de a obra já ter acabado. As paredes de tijolo em ruína de um anexo onde estão vários objectos pendurados são o cenário ideal para o que se vê da grande sala da pequena casa, também o local onde se cozinha e se faz as refeições. Abed e Annelien cortaram muitas coisas do projecto para diminuir o orçamento da construção, mas nunca desistiram da janela com mais de quatro metros de largura e outros tantos de altura que dá para o pátio das traseiras com as paredes em tijolo maciço a desfazerem-se.

“As pessoas entram aqui e dizem ‘uau!’ quando descobrem o espaço por dentro”, explica Abed. Quando lhe pedimos para definir o trabalho do atelier José Adrião Arquitectos (JAA), o designer palestiniano, 36 anos, começa por usar a palavra “abertura”: “Aqui toda a gente se sente convidada. Os meus filhos chegam à sala de manhã, pegam nas coisas que estão à vista na cozinha e tomam o pequeno-almoço sozinhos. É o arquitecto que torna a vida confortável.”

José Adrião está satisfeito com o que vê um ano depois de a casa ter sido inaugurada. “Está lindo. Já há relva e vocês fizeram um trabalho fantástico com o anexo em ruínas. É isto que estava a tentar explicar quando falo sobre a importância da imperfeição em arquitectura, sobre a importância do acaso”, afirma, dirigindo-se à jornalista.

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O quarto das crianças na Casa da Trafaria Nuno Almendra
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A sala, a cozinha e a zona de refeições partilham um espaço comum na Casa da Trafaria Nuno Almendra

O arquitecto e o seu atelier onde trabalham mais dez pessoas — “sozinho não se faz nada” — incorporam a sua visão do mundo nos projectos, a sua maneira de estar em sociedade. “Gosto de pensar que contribuo para um ambiente democrático e para a consolidação destes mesmos princípios. Acredito que a arquitectura pode, de maneira muito simples, trabalhar a partir destes pressupostos, a liberdade, a inclusão, a igualdade. [Acredito] numa arquitectura produzida a partir de um entendimento da Carta dos Direitos Humanos, criando iguais circunstâncias de uso para todos”, afirma, voltando às palavras em que reflectiu quando recebeu, este mês, o Prémio FAD Cidade e Paisagem, o mais relevante prémio ibérico de arquitectura.

“Dessa ideia de perfeição já resultaram coisas horríveis, como as arquitecturas produzidas pelos regimes autoritários. Para nós, a imperfeição torna as coisas mais humanas. Revejo-me muito mais numa arquitectura que  tem um carácter informal, aberto, flexível, e que aceite algumas imperfeições. É mais fácil um utilizador relacionar-se com um espaço desse género do que com uma arquitectura que tenta ser perfeita e que é um sistema fechado. As arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”, afirma.

Uma praça debaixo de um viaduto

Desenhar uma praça numa cidade é o sonho de qualquer arquitecto. Desenhar uma praça em Lisboa debaixo de um viaduto não é para qualquer um. Mas quem conhece o trabalho de José Adrião não pode deixar de achar que há projectos que têm a cara do arquitecto mesmo antes de nascerem no chão da cidade. É o caso da requalificação da Alameda Manuel Ricardo Espírito Santo, em Benfica, que para criar este novo espaço público de Lisboa trabalhou coisas tão diferentes como a esplanada do Califa, uma instituição entre os cafés lisboetas, um inesperado maciço de exóticas tipuanas, árvores originárias da América do Sul, mas também realidades menos poéticas como um parque de estacionamento que até agora albergava 500 carros ou o espaço disponível debaixo do viaduto da 2ª Circular. 

A intervenção que começa na alameda estende-se até ao Centro Comercial do Fonte Nova, do outro lado do viaduto, que com as suas torres desenhadas em betão e azulejo branco se destaca pela qualidade arquitectónica acima da média. Convidado pela Câmara Municipal de Lisboa em 2015, no âmbito do programa Uma Praça em Cada Bairro, foi este o projecto premiado com o Prémio FAD Cidade e Paisagem: “Achei espectacular trabalhar debaixo de um viaduto em Benfica, porque podemos fazer mais experimentação. As outras praças são na cidade consolidada e aí não seria possível experimentar tanta coisa.” O júri do Prémio FAD sublinhou, exactamente, que “a questão da representação democrática no espaço público é uma das mais complexas da sociedade ocidental” e louvou a nova praça desenhada fora da cidade histórica. O atelier, acrescentou, foi capaz de integrar a adversidade de uma área urbana sob um viaduto com um pesado trânsito rodoviário.

A versão espreguiçadeira dos bancos da Praça Fonte Nova, em Benfica (Lisboa) Rui Gaudencio
Um bebedouro ao pé da fonte Rui Gaudencio
A fonte que dá nome à nova praça de Benfica Rui Gaudencio
A fonte que dá nome à nova praça de Benfica Rui Gaudencio
A praça ocupou a área debaixo do viaduto da 2ª Circular Rui Gaudencio
A praça tem o maior conjunto de tipuanas em Portugal Rui Gaudencio
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A versão espreguiçadeira dos bancos da Praça Fonte Nova, em Benfica (Lisboa) Rui Gaudencio

Estamos mais uma vez na Praça Fonte Nova, desta vez numa segunda-feira a meio da tarde, faltam poucos dias para o Verão começar. Voltámos cá várias vezes, desde que começámos esta reportagem no Inverno, quando o frio ainda afastava as pessoas dos grandes bancos com curvas sinuosas, capazes de criar dentro da praça com 3,5 hectares sete pequenas “ilhas”. É o que José Adrião lhes chama e comportam funções diferentes, desde um parque para cães, até à fonte evocada na toponímia da praça. “É muito importante ir várias vezes ao sítio quando estamos a desenvolver um projecto. O sítio dá muitas respostas para o trabalho do arquitecto. Temos de ir de manhã, à noite, ao fim-de-semana, porque tem ocupações completamente distintas.”

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José Adrião na Praça Fonte Nova, em Benfica (Lisboa) Rui Gaudêncio

Ao contrário do Inverno, hoje ainda não se acenderam as luzes que iluminam as copas das tipuanas, que dão um tecto mágico à praça quando a noite cai. Ao contrário dos domingos, onde passam mais bicicletas na ciclovia e alguns ciclistas aproveitam para fazer uma pausa, parece haver mais carros parados no parque de estacionamento, que ainda subsiste embora reduzido, porque hoje é dia de trabalho. “O estacionamento passou a ter metade da capacidade, porque foi impossível tirá-lo todo. A preocupação das pessoas é mesmo estacionamento, estacionamento, estacionamento... Foi uma luta e houve muita negociação. Há imensos grupos de pressão, as vozes na cidade são muito diferentes”, comenta Adrião, acrescentando que a Praça Fonte Nova guarda vários desejos de cidade lá dentro, alguns deles contraditórios, dos skaters ao donos dos cães. “Conseguiram passar de 500 para 250 lugares e a perspectiva é que o tamanho do parque de estacionamento encolha mais com o passar do tempo, porque no futuro haverá menos carros nas cidades. Os skaters disseram-nos que não queriam skateparks mas antes skatear a cidade. E concluímos que o pavimento em betão muito liso seria o melhor para todo o tipo de usos, dos skaters às cadeiras de rodas ou aos carrinhos de bebé.”

As quintas que o viaduto levou

Numa das primeiras visitas ao espaço com que ia trabalhar em Benfica, o arquitecto ficou intrigado com o facto de a Estrada de Benfica se transformar em Rua Prof. José Sebastião e Silva debaixo do Viaduto da 2ª. Circular para depois reaparecer novamente, mais à frente, como Estrada de Benfica. “Como as ruas e as estradas não desaparecem assim, começámos a perceber quão complicada e interessante era a zona. Aqui, neste sítio, havia um sistema de quintas muito rico, que ainda se vê num mapa do princípio do século — falámos com pessoas que ainda se lembram desse Benfica rural e agrícola, era a Quinta das Rosas, a Quinta dos Leões, a Quinta das Flores.”

Foi nos anos 60 que a construção do viaduto da 2ª. Circular arrasou com todo este sistema de quintas de produção agrícola em terras férteis, servidas pela Ribeira de Alcântara, entretanto encanada. A nova praça é uma plataforma, um interface unido pelo betão afagado do pavimento, que trabalha sobre a memória deste sistema e sobre os problemas a resolver, incluindo os parques canino e infantil, mas também realidades mais ligadas ao desenho do chão, como o alargamento dos passeios na zona junto ao Califa, ou a integração das tipuanas que surgiram aqui nos anos 80 e dão a sombra necessária à praça. “Claro que a nova praça não repõe o sistema, mas consegue unir as duas Estradas de Benfica separadas pelo viaduto.” Desenharam também uma fonte, que é verdadeiramente “nova” e procura atenuar o barulho dos carros, homenagem à que desapareceu, ironicamente, com a construção do Centro Comercial Fonte Nova. “A fonte é muito lúdica, porque os miúdos podem tomar banho aqui no Verão. Nunca sabem de onde vai sair a água. Ela cria mesmo uma ilha onde as pessoas estão sentadas à volta mais ou menos hipnotizadas pelos jogos de água.”

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Desenhar uma praça em Lisboa debaixo de um viaduto parece um sonho feito à medida do arquitecto José Adrião, o que lhe pedia a requalificação da Alameda Manuel Ricardo Espírito Santo, em Benfica FG + SG

Mas das vezes que fomos à Praça Fonte Nova ainda não foi possível ver a água a jorrar da fonte, faltando também instalar dois quiosques para completar a obra. É nas ilhas que se encontram os jardins propriamente ditos, tudo o que foi decidido pelo programa preliminar ou que, entretanto, foi pedido pela população de Benfica.

Os bancos com formas inusitadas que criam as sete ilhas são a imagem de marca da Praça Fonte Nova. “Nunca tínhamos desenhado bancos para um espaço público. Há quatro módulos: o recto, o curvo, a cadeira, a espreguiçadeira. As pessoas não precisam de os usar de forma passiva, mas podem escolher a maneira como se querem sentar ou deitar.” É preciso pormos os pés para cima para nos conseguirmos encostar nas espreguiçadeiras. “Mas será que aquilo que pensamos e desenhamos vai ser usado da forma como estamos a prever? Será que o desenho potencia os usos?” — interroga-se.

Rua cor-de-rosa, Camarate e Baixa-House

Antes da Praça Fonte Nova, a intervenção de espaço público mais conhecida de José Adrião é a famosa Rua Cor-de-Rosa (2011), no Cais do Sodré. O projecto, como o nome indica, que teve como cliente uma associação de comerciantes locais, quis tornar mais definitivo a decisão inicial de pintar o pavimento de cor-de-rosa, gesto que antes do concurso de arquitectura ser lançado com o convite a seis equipas de arquitectos servira apenas aos estabelecimentos nocturnos para testar a área a intervencionar. “Decidimos repintar a rua de maneira menos efémera e tornámos a intervenção mais gráfica com os limites brancos. Tornámo-la um pouco mais permanente e chamámos-lhe Rua Cor-de-Rosa para não se confundir com a Rua da Rosa no Bairro Alto.” O nome também se tornou sinónimo de uma movida nocturna que se queria mais inclusiva em Lisboa.

Não digam ao arquitecto, porém, que o atelier tem feito mais espaço público ultimamente. “Querem sempre pôr-nos numa redoma! Ou somos os das intervenções efémeras, com os projectos para a Moda Lisboa ou com o projecto Magnólia, de iluminação de Natal, que também nos deu um prémio FAD em 2012. Depois éramos os da reabilitação com o Prémio Vilalva e agora somos os do espaço público com o novo Prémio FAD para a Praça Fonte Nova. Mas gostamos de trabalhar com todos os temas, o nosso atelier faz tudo.”

Estamos no centro de Camarate para José Adrião explicar como nos projectos de baixo custo, como aqueles que fez para a Câmara Municipal de Loures, onde procurou sistematizar o espaço público para criar bons passeios, não é obrigatório usar materiais de segunda. Antes pelo contrário, numa zona deprimida, descaracterizada pelo atravessamento do Eixo Norte-Sul e fustigada pelo barulho da passagem dos aviões, o atelier optou por usar um lancil de pedra com 20 centímetros de espessura, um remate mais nobre para um espaço público que quer ser capaz de refazer o centro histórico de Camarate à volta do Largo da Igreja de Santiago. “Não poupámos nos materiais, porque o lancil em pedra calcária é investimento para durar.” E, tal como no projecto para o centro histórico de Loures, que considera ser da mesma família do de Camarate, também foi usado um pavimento em betão pré-fabricado desenvolvido numa parceria com a cimenteira Secil.

Antes de deixarmos Camarate ainda vamos espreitar uma das muitas azinhagas da zona, porque o trabalho de campo nunca está terminado e o objectivo da segunda fase do projecto, que terá início no final do ano, é unir estes antigos caminhos rurais que ainda se mantêm e são pitorescos. A pretexto de uma buganvília que impede a passagem do carro, acabamos dentro da Casa de Repouso dos Motoristas de Portugal, que dá o nome a uma das azinhagas, para perceber quem são as pessoas que atravessam todos os dias estas vielas rústicas e hão-de justificar a sua requalificação junto da Câmara de Loures.

Se o interesse por projectos de baixo custo é uma das características do trabalho de José Adrião, essa é uma atitude que também tem contaminado as muitas reabilitações que o atelier já fez, mesmo a que lhe deu o Prémio Vasco Vilalva 2012 e o Prémio FAD de Interiorismo 2012 pelo projecto para a esquina da Rua dos Fanqueiros com a Rua da Conceição, em plena Baixa lisboeta, uma recuperação de um prédio pombalino já muito adulterado e a sua adaptação a apartamentos para aluguer de curta duração, conhecido como Baixa-House (o atelier chama-lhe Fanqueiros 81). “Este projecto já tinha começado em 2007, mas nessa altura a única coisa possível era o restauro integral, permitindo poucas alterações, e havia imensos projectos à espera de serem aprovados na câmara de Lisboa. Até ser definido o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina em 2011, não era possível pôr três apartamentos por piso em vez de dois e instalar um elevador como o projecto propunha.”

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A Baixa-House, na Baixa pombalina miguel manso

O que a Baixa-House começou a fazer há sete anos, integrando os vários tempos de uma forma visível, parece mais banal hoje, mas não o era em 2011, como notou a Fundação Calouste Gulbenkian, responsável pela atribuição do Prémio Vilalva, que considerou a intervenção “um exemplo de boas práticas numa zona em que a reabilitação urbana é especialmente sensível”, salientado “a coerência entre o projecto de arquitectura e a decoração do edifício, em especial no aproveitamento ou reutilização de materiais e objectos”.

“Num prédio com data de 1780, recua-se até onde?” — pergunta o arquitecto. “Voltamos ao início, quando não havia casas-de-banho ou vidros nas janelas mas só portadas? Dissemos à câmara que queríamos aceitar todas as camadas e acrescentar mais uma, infra-estruturas contemporâneas de água e electricidade, mais o elevador, e resolver as questões térmicas da cobertura.” Quanto à nova camada, acrescentada agora, tem a certeza de que não será a última. “Temos a consciência clara que as obras estão em aberto. Não é tanto por gostar do conceito de obra aberta, que também gosto, mas porque a arquitectura é mesmo assim. Não gostamos de pôr um ponto final num edifício.” A Baixa-House defende que as partes de tempos diferentes podem viver em simultâneo. “Não é preciso homogeneizar. Não há um tempo perfeito, nem é preciso procurá-lo. A co-existência de vários tempos num edifício é muito interessante.”

À entrada da Baixa-House, mesmo no início das escadas, aponta para a guarda e respectivo corrimão que começam com um desenho dos anos 40 antes de se ligarem à mesma estrutura mais antiga do edifício original. Não foram substituídos, nem corrigidos, e a colagem de linguagens diferentes marca o espírito da obra — aceitar a heterogeneidade do edifício e minimizar os custos.

Apartamento da Baixa-House, na Baixa pombalina (Lisboa), Prémio Vilalva Fundação Gulbenkian 2012 Miguel Manso
Apartamento da Baixa-House, Prémio Vilalva Fundação Gulbenkian Miguel Manso
Arquitecto José Adrião na Baixa-House Miguel Manso
Escadas Baixa-House, Prémio Vilalva Fundação Gulbenkian Miguel Manso
Apartamento da Baixa-House, Prémio Vilalva Fundação Gulbenkian Miguel Manso
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Apartamento da Baixa-House, na Baixa pombalina (Lisboa), Prémio Vilalva Fundação Gulbenkian 2012 Miguel Manso

“Há muita gente a querer investir em Lisboa, mas há muitas equipas preparadas. Durante a crise ganhou-se competência e há muita gente a fazer boa reabilitação. Se fosse nos anos 80 e 90 estávamos tramados. Há dez anos a reabilitação não era considerado  ‘arquitectura’. Fomos sempre habituados desde a escola a construir de raiz. Mas nós gostamos de trabalhar todos os temas e, no fundo, tudo é reabilitação.” Hoje, acrescenta, mesmos os agentes imobiliários, para quem a reabilitação era secundária, já pensam de maneira diferente.

No Largo do Stephens, junto ao Cais do Sodré, ganharam um concurso lançado por um privado, um fundo imobiliário alemão, em que os honorários pagos aos arquitectos não entraram na discussão para ganhar o projecto. Trata-se de fazer apartamentos de luxo, ou “prime”, nas palavras do arquitecto. “O processo está a ser bem conduzido. Antes, um fundo imobiliário achava uma chatice ter que contratar um arquitecto para apresentar um boneco à câmara. Agora já não é visto como um empecilho e o arquitecto é procurado para valorizar o património. Está a acontecer pela primeira vez em muitas décadas.” Mesmo quando trabalha nestes apartamentos de luxo, o atelier não sente necessidade de usar torneiras ou interruptores topo de gama. O luxo tem a ver com luz, espaço, pé-direito alto.”

Quando ficam as fachadas

Mas nem sempre a procura de potenciar o que está no sítio, revelar o que já existe, é o elo mais forte de uma reabilitação, como podemos ver na Casa da Severa, equipamento cultural para a Câmara Municipal de Lisboa, ou na Casa dos Prazeres, a casa que José Adrião fez para si próprio. Neste dois casos, ficaram só as fachadas, porque as pré-existências também não têm que ser sagradas: “Se não há arquitectura que parta do zero, também é preciso usar as pré-existências de forma bastante descomplexada. Na Casa do Prazeres e na Casa da Severa, os interiores estavam em péssimo estado. No primeiro caso, se deitasse a fachada abaixo e fizesse um edifício de raiz a câmara obrigava a que o edifício fosse dois metros mais baixo, porque tinha que alinhar pela média dos outros edifícios da rua.”

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A Casa da Severa, na Mouraria Rui Gaudêncio

Quem chega do Martim Moniz ao Largo da Severa, percorrendo a Rua do Capelão, percebe que a Casa da Severa (2012) conseguiu transformar um pequeno larguinho da Mouraria, desenhado ao mesmo tempo pelo atelier de Tiago Silva Dias, o objectivo de um programa da Câmara de Lisboa dedicado à reabilitação da Mouraria e do percurso até ao Castelo. Um pequeno edifício, com seis habitações distribuídas por três pisos mais sótão e onde terá vivido a fadista Severa no século XIX, foi transformado num equipamento cultural através de uma reabilitação que optou por demolir todo o interior sem condições de habitabilidade, e alterar substancialmente a fachada virada ao largo. Como o edifício tem a particularidade de estar solto em relação ao resto da típica malha urbana da Mouraria, podendo ser percorrido a toda à volta, a reabilitação reafirmou a sua presença isolada — quase como se de uma igreja se tratasse —, fazendo-se agora a entrada principal pela empena virada à praça. “A empena era praticamente cega, havendo pequeníssimas aberturas de ventilação. Resolvemos fazer uma escadaria exterior, que funciona como um prolongamento do interior, e a entrada faz-se agora pelo primeiro andar em vez de se fazer ao nível da rua. O edifício passa a ser activador da praça, transformando todo o Largo da Severa num equipamento público. É daí que vem a luz e o som.”

Lá dentro, onde há uma sala que pode atingir os 6,5 metros de altura, além de uma cozinha, instalações sanitárias e arrumos, funciona agora a casa de fados Maria da Mouraria, explorada pelo fadista Hélder Moutinho, cuja decoração para turista parece não tirar partido do espaço. Mas o programa, lembra o arquitecto, era para um espaço diurno.

Foi por ter visto a Casa da Severa que Frederico e Miguel Alexandre pediram ajuda para reabilitar um espaço mais acima, nuns escassos 20 metros quadrados do n. 54 da Rua João do Outeiro. “Foi por causa da Casa da Severa que a Mouraria se transformou, os portugueses não se aproximavam daqui”, diz Miguel Alexandre. “Isto aqui não tinha nada, era uma tragédia.”

José Adrião indica um dos bancos de pau, encostado aos azulejos brancos das paredes, para espreitarmos a vista dali. Agora, depois da porta alargada, o interior já consegue integrar a paisagem do centro histórico, que se prolonga através de uma esplanada exterior. “Aqui sentados já vemos o Convento da Graça lá em cima. Dantes não se via nada.” A ajuda do atelier passou por gestos tão simples como este de ampliar uma porta, por encontrar também o nome adequado para o espaço e uma identidade gráfica — chama-se Jasmim da Mouraria — e por escolher uma trepadeira da mesma planta para colocar ao lado da porta pintada de azul vivo do café-bar. O atelier e os dois irmãos já têm novo projecto juntos, um restaurante mais acima na Mouraria.

Sala comum da Casa dos Prazeres, na zona de Alcântara (Lisboa) Rui Gaudencio
Sala comum da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Sala comum da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Sala comum da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Sala comum da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Sala comum da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Escadas da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Escadas Rui Gaudencio
Quarto Rui Gaudencio
Quarto Rui Gaudencio
Casa de banho Rui Gaudencio
Quarto Rui Gaudencio
Casa de banho Rui Gaudencio
Quarto Rui Gaudencio
Escadas para o terraço Rui Gaudencio
Terraço Rui Gaudencio
Terraço Rui Gaudencio
Pequeno tanque no terraço Rui Gaudencio
Sala comum Rui Gaudencio
O arquitecto numa das janelas da Casa dos Prazeres Rui Gaudencio
Zona de refeições na sala comum Rui Gaudencio
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Sala comum da Casa dos Prazeres, na zona de Alcântara (Lisboa) Rui Gaudencio

A casa que José Adrião fez para si próprio em Lisboa, a que chama a Casa do Prazeres, foi incluída na Colecção A Casa de Quem Faz as Casas (distribuída pelo PÚBLICO em 2016), livro com autoria de Maria Milano e Roberto Cremascoli. Situada em Alcântara na Rua Gilberto Rola, a poucos passos do atelier JAA, é uma síntese do trabalho do arquitecto e da sua maneira de viver: “A casa não é compartimentada, praticamente não tem portas, e permite diferentes utilizações dos espaços. Espaços abertos, disponíveis, onde tudo pode acontecer; espaços absolutamente versáteis”, lê-se no livro sobre a Casa do Prazeres, acrescentando-se que o atelier tem vindo a desenvolver uma reflexão sobre os mecanismos do habitar contemporâneo, de um novo habitar. “A sequência nos percursos internos de uma casa deve permitir um efeito de constante surpresa, e a compartimentação deve estar predisposta a mudanças funcionais, não havendo uma predefinição do modo como cada espaço deve ser utilizado.”

Todos os espaço se misturam, deixando de fazer sentido átrios e corredores, como tem ensinado ao atelier a casa pombalina. “Não existem zonas com funções únicas: uma biblioteca pode invadir o espaço da cozinha, que por sua vez se abre sem barreiras para uma zona de trabalho, que é também um lugar de convívio”, continuam Maria Milano e Roberto Cremascoli, que chamam ao arquitecto “um arqueólogo da cidade sedimentada”, capaz de inscrever a sua camada sobre muitas outras, o tal tempo contemporâneo que é apenas mais uma camada e que, na máquina do tempo, há-de passar a ter também ela que ser reabilitada.

Nesta zona da cidade que ainda funciona como uma aldeia, e onde é possível encontrar a porta da Casa dos Prazeres muitas vezes aberta, talvez porque se foi ao atelier buscar qualquer coisa esquecida, talvez porque se foi ao restaurante em frente encomendar um cozido à portuguesa para o almoço. A Rua Gilberto Rola é agora um corredor entre a casa e o atelier, a cidade transforma-se na casa de José Adrião.

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A Casa dos Prazeres, em Alcântara Rui Gaudêncio
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