Irene, a miúda do cartaz feminista que abanou as redes sociais

É espanhola, mas foi tema de destaque em Portugal quando saiu à rua no 1.º de Maio, em Lisboa. Com um modesto cartaz, a jovem activista pôs as redes sociais a debater aquilo que toda a gente conhece, mas de que pouco se fala — o trabalho reprodutivo

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Irene Martín tem 22 anos e estuda Engenharia Biomédica DR

“Farta até à cona de gerar a mais-valia dos homens. Trabalho reprodutivo sustenta o capital.” Foram estas as frases que Irene Martín escreveu num cartão neste 1.º de Maio, em Lisboa. “Fiz o cartaz na rua, no Largo do Intendente, muito pouco tempo antes da manifestação, foi uma coisa muito espontânea”, contou a jovem ao P3.

Mas, horas depois, a discussão instalou-se nas redes sociais com a publicação de fotos de Irene com o cartaz ao alto. Uns quantos focavam-se no uso da palavra “cona” e a maioria confundia “trabalho reprodutivo” com “prostituição” e “gravidez”. Um desconhecimento que apanhou a espanhola de 22 anos de surpresa — “No meu país, é um termo muito conhecido.”

O Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE) explica que a expressão (que ganhou força na luta feminista nos 1970) engloba “todas as tarefas associadas ao suporte da actual e futura força de trabalho”. Um cargo que “não é remunerado” e que geralmente “é levado a cabo pelas mulheres”. E isto envolve a reprodução biológica, mas também outras actividades, explica Irene, como “cuidar das crianças, de quem está doente, limpar, lavar, cozinhar”: “Tudo isso é trabalho necessário para que sejamos indivíduos produtivos social e economicamente.” É por isso, conclui a activista, que este tipo de encargos “sustenta o capital”.

É mais ou menos por estas palavras que a jovem espanhola tem respondido às dezenas de tweets que lhe são dirigidos acerca do cartaz. Dá trabalho, mas não se importa — está a aproveitar a “viralização massiva” para “trazer o debate feminista para a esfera pública”.

Irene está em Portugal em Erasmus há cerca de dois meses, a tirar o mestrado em Engenharia Biomédica, no Instituto Superior Técnico, mas já se decidiu a ficar em Lisboa “pelo menos mais um ano”. Em conversa com o P3, conta que mergulhou no mundo do feminismo e do activismo há quatro ou cinco anos e que a primeira coisa que fez quando chegou à capital portuguesa foi procurar um espaço de discussão — a Assembleia Feminista de Lisboa foi o escolhido.

Foi também com a ajuda das “companheiras da assembleia” que Irene conseguiu traduzir para português as frases que tinha em mente para o cartaz. A tradução literal da expressão espanhola hasta el coño [“farta até à cona”] foi propositada: “Um dos objectivos era criar desconforto — eu sabia que era uma palavra forte. Actualmente, até é usada pelos homens para nos incomodar. Mas acho que as mulheres têm de se reapropriar da expressão e trazer a nossa sexualidade — que é brutalmente silenciada — ao espaço público. Falar da cona na rua é um acto político.”

“Isso a que chamam amor é trabalho não pago”

A activista espanhola acha, ainda, que é preciso incluir-se o feminismo na luta pelos direitos laborais. Principalmente porque o trabalho reprodutivo é algo de que “os sindicatos não falam”, argumenta: “As mulheres são trabalhadoras na fábrica e em casa, têm uma jornada de trabalho que é dupla ou tripla e que ninguém reconhece.”

No ano passado, o PÚBLICO noticiava que Portugal é o quarto país onde as mulheres passam mais tempo a fazer trabalho não pago, com mais de quatro horas por dia entre as tarefas domésticas e de cuidado dos filhos, dos idosos ou dos familiares doentes. Irene conhece estes dados e, perante eles, cita a feminista italiana Silvia Federici: “Isso a que chamam amor é trabalho não pago.”

Para a estudante, a solução terá de passar “por uma organização social e colectiva do trabalho reprodutivo”, que pode começar pela “criação de redes públicas de creche, cantinas e lavandarias” e pelo “reconhecimento” das actividades domésticas como um trabalho e a “atribuição de um salário”. É uma posição pouco consensual que lhe valeu algumas críticas nas redes sociais. Mas, apesar disso, a maioria dos comentários davam mais destaque ao seu aspecto físico do que às suas ideias, revelou ao P3: “Dizem que eu sou gorda, dizem que não me depilei, dizem que sou lésbica, que sou puta. Críticas que um homem nunca vai receber. Porque as mulheres são concebidas como objectos decorativos.”

Fora “insultos gratuitos”, o dever de trazer um tema pouco falado para a praça pública foi cumprido. E o cartaz, esse, em breve terá nova casa: Irene vai cedê-lo à Associação Ephemera, de José Pacheco Pereira, a pedido da mesma.

Ver Espanha sair à rua, a partir de Lisboa

Irene tem estado muito atenta ao que se passa no seu país natal, que saiu à rua em massa contra uma sentença judicial que condenou cinco homens a nove anos de prisão por abuso sexual, mas ilibou-os da acusação mais grave — a violação de uma jovem. “Esta sentença é desoladora”, desabafa: “Eles basicamente estão a dizer a todas as mulheres que denunciar casos de violação na justiça do seu país não vale a pena. É brutal.”

Mas se a decisão do tribunal a revolta, a mobilização pública comove-a. No passado sábado, 32 mil pessoas juntaram-se em Pamplona, numa manifestação convocada por vários colectivos feministas. A estudante que está por cá em Erasmus admite que fica “um pouquinho triste” por não estar lá, ao ver “a capacidade de mobilização das feministas espanholas”. E deixa um recado a Portugal, um país que a jovem considera ser mais tímido na dimensão das manifestações feministas: “É preciso sair à rua.”

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