Os jovens médicos têm um problema que não é só deles

Da próxima vez que utilizares uma urgência, repara bem em quem te está a atender. É muito provável que sejam internos, os internos que sofreram as consequências deste sistema crescentemente imbecil

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Jorge é estudante de Medicina (UP) e Filosofia Política (UMinho) e investigador no CINTESIS
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Jorge é estudante de Medicina (UP) e Filosofia Política (UMinho) e investigador no CINTESIS

O problema parece insignificante: mudaram a prova de acesso à especialidade dos jovens médicos. “Que tenho eu a ver com isso?”, perguntarás. A resposta, não sendo óbvia, é clara: tens tudo a ver com isso.

O curso de Medicina dura seis anos. Actualmente, no final desses seis anos, os recém-formados enfrentam um exame, conhecido pelo nome da bibliografia recomendada – Harrison –, que vai servir para ordená-los. Melhores notas significam prioridade na escolha da especialidade a aprender e do local onde vão prosseguir a sua formação. Uma simples classificação, expressa de 0 a 100, determina por completo o futuro de cerca de dois mil estudantes anualmente.

Como é natural, perante este cenário, os estudantes fazem deste exame o centro das suas vidas durante o último ano de curso, com dois danos claros. Por um lado, desconcentram-se do objectivo do último ano de curso que, na teoria, é a obtenção de experiência profissional, essencial numa área onde as consequências se medem em vidas. Por outro lado, a “hibernação” forçada tem impacto no desenvolvimento de capacidades sociais e humanas que, diria eu, são em alguns casos mais importantes do que o saber técnico. Ressalvo que não se trata aqui de um esforço de duas ou três semanas de maior sacrifício pessoal; uma grande maioria estuda mais de dez meses para este exame.

Este era o paradigma há já vários anos, com agravamentos constantes devido à falta de coragem política para mexer nos números de estudantes de Medicina em Portugal (tema que tratei noutro fórum, há cerca de dois anos, e que está actualmente pior).

Qual é a novidade? Há alguns dias conheceu-se o modelo da nova prova de acesso à especialidade. Supostamente, o exame será agora de teor mais prático, com perguntas que apelam mais a um sentido clínico, o que é bom. As anteriormente 100 perguntas passam a 150, distinguindo melhor entre os candidatos — não esquecer que é esta a principal função do exame. Mas é manifestamente insuficiente, tendo inclusive algumas agravantes. O leque de áreas alvo de examinação é amplamente alargado, bem como a bibliografia recomendada — somadas, são mais de 5000 páginas densas, muitas delas com uma utilidade idêntica à de memorizar secções da lista telefónica. Continuamos a reduzir a ordenação dos futuros médicos a um exercício de memorização de 240 minutos. Ignoramos a diversidade de experiências e a motivação para inovar que acontecem nos seis anos de curso. O impacto prático será o de promover um ainda maior período de hibernação, pelo aumento da dificuldade, com prejuízo na experiência profissional, no desenvolvimento social e humano, e na saúde mental dos candidatos.

E é aqui que isto te afecta, caro cidadão português.

A formação médica sofre novo traumatismo quando já estava doente. Aplicam-se medidas simplistas, aparentemente boas, mas ruinosas quando escrutinadas. Desde a entrada nas faculdades até ao final da formação especializada, somam-se os erros cometidos pelo Estado.

Problema 1: como a população vê a escassez de médicos em algumas áreas do Serviço Nacional de Saúde, não há coragem para diminuir as vagas nas faculdades, embora a sua manutenção não seja, de todo, uma solução. Portugal tem mais médicos por habitante do que a maioria dos restantes países da OCDE: estão é fora do SNS, e só voltam para lá com uma dignificação da carreira hospitalar pública e das condições de trabalho, aliadas a uma reforma de vários “buracos” legais que permitem um fluxo de recursos para fora do SNS rumo ao sistema privado.

Problema 2: como não se diminuem as vagas, e como há limites para a quantidade de especialistas capazes de dar formação aos recém-médicos, há um número crescente de estudantes que, tendo um curso de Medicina, não têm qualificação formal nem real de exercer aquilo que tanto custou a obter, quer a eles, quer ao próprio Estado.

Problema 3: como há problemas crescentes no sistema de ordenação da formação especializada, fazem-se umas alterações cosméticas, que não só não melhoram o processo de selecção (então queremos médicos que sabem recitar livros ou que tiveram uma formação rica em experiências diversas, com ambição para procurar mais fora das soluções tradicionais?), mas pioram a própria formação dentro das escolas médicas.

Da próxima vez que utilizares uma urgência, repara bem em quem te está a atender. É muito provável que sejam internos, os internos que sofreram as consequências deste sistema crescentemente imbecil. Pergunta-lhes o que acham da sua formação e especificamente sobre o exame de especialidade. Tenta entender as consequências deste sistema. E, ao notar que te afecta a ti e aos teus, através daqueles que o deviam auxiliar nos momentos de maior fragilidade, solidariza-te com a luta deles. Ganham os jovens médicos, ganham os doentes, e ganhamos todos.

Declaração de interesses: sou estudante de Medicina, mas não quero ser clínico. Não tenciono passar por este processo kafkiano, nem a sua alteração me beneficiaria mais do que a ti e aos restantes portugueses. Escrevo por ver aqui um problema grave para o país e para o Sistema Nacional de Saúde.

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