O que Pessoa escreveu sobre literatura e escritores

A assinalar os 130 anos do nascimento de Fernando Pessoa, a Assírio & Alvim acaba de lançar Sobre a Arte Literária, uma escolha dos muitos textos que o poeta deixou sobre o único assunto que verdadeiramente o interessou.

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“O grande amor da vida de Pessoa foi a literatura: mesmo quando não parecia falar dela, a literatura estava sempre subjacente”, diz Richard Zenith, um dos organizadores, com Fernando Cabral Martins, de Sobre a Arte Literária, uma selecção, acabada de lançar pela Assírio & Alvim na colecção Pessoa Breve, do que ortónimo e heterónimos deixaram escrito sobre a literatura em geral e alguns escritores em particular.   

Para assinalar o 130.º aniversário do nascimento do poeta, a 13 de Junho passado, a Assírio & Alvim publicou ainda, além deste volume, que inclui três textos inéditos, uma nova edição melhorada (e também acrescida de um texto inédito) de A Educação do Estóico, do semi-heterónimo Barão de Teive, igualmente preparada por Richard Zenith.

Apesar de a literatura ter sido manifestamente a grande razão de ser da vida de Fernando Pessoa, não apenas enquanto praticante dela, mas também como tópico de reflexão – de resto, foi até como ensaísta literário que primeiro se deu a conhecer, publicando na revista A Águia, em 1912, o artigo A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada –, a verdade é que o extenso e muito variado acervo de textos que dedicou à arte literária tem suscitado um número relativamente limitado de edições autónomas, quando comparado com outros domínios da criação pessoana.

O livro agora organizado por Zenith e Cabral Martins tem o seu mais longínquo ascendente nas Páginas de Estética e de Crítica Literária, que Jacinto Prado Coelho e o pessoano alemão Georg Rudolf Lind editaram em 1966 na Ática. E que, apesar ter saído há mais de 50 anos, talvez seja ainda assim o precedente mais próximo em termos de conteúdo, já que o recente Apreciações Literárias, organizado por Pauly Ellen Bothe e publicado em 2013 na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, na colecção de edições críticas da obra pessoana, se foca sobretudo no que Pessoa escreveu sobre outros escritores.

Um corpo de textos que o volume agora lançado na Assírio & Alvim trata na sua terceira e última parte, onde reúne o que Pessoa deixou de mais próximo do que se pode considerar crítica literária, mesmo se, como nota Zenith, “as suas ideias sobre literatura”, incluindo os seus comentários às obras de outros escritores, “servem muitas vezes para afirmar ou ratificar o seu próprio mundo literário”. E exemplifica: “Quando Pessoa elogia Pascoaes, e mais tarde António Botto, o mais importante, sem pôr em causa a verdade das suas apreciações, era o que esses outros suscitaram nele”, defende, argumentando que “Botto foi quase como um heterónimo que Pessoa usava para os seus próprios fins”.

Camões, Antero, Cesário, Pessanha ou Sá-Carneiro, na literatura portuguesa, e Shakespeare, Milton, Goethe, Poe ou Oscar Wilde, são alguns dos muitos autores que interessaram Pessoa, que dedicou mesmo um pequeno texto ao seu contemporâneo James Joyce. Mas, nota Zenith, “escreveu mais sobre Botto do que sobre qualquer outro autor”.  

Sobre a Arte Literária abre com um conjunto de textos em que Pessoa aborda de modo mais geral a literatura e a história literária, reservando um segundo capítulo para textos assinados pelos heterónimos, não raras vezes discordantes entre si.

“Não existe em Pessoa sossego crítico ou estabilidade teórica”, sublinham os organizadores no prefácio a este volume. “Se é uma voz neoclássica que fala, o sentido e a sintaxe são condizentes e sofrem a inflexão que essa específica coerência implica. Mas, se se trata de uma voz moderna – ou decadente, ou ocultista, ou sensacionista, etc. –, há uma modulação que afina por esse diapasão concreto”. Esta capacidade de pensar a partir das mais diversas perspectivas não implica todavia, alertam Zenith e Cabral Martins, “que não haja pontos de acordo entre todas as vozes – como, por exemplo, o privilégio dado à literatura entre todas as artes”.

Algo paradoxalmente, tratando-se de um autor cada vez mais universalmente reconhecido como uma das vozes cruciais da modernidade, o crítico que emerge destes textos é, reconhece Zenith, “bastante conservador”, alguém que “valoriza na literatura a ideia aristotélica de um todo orgânico e equilibrado”. Uma ambição que contrasta notoriamente com a natureza fragmentária de boa parte da sua obra. E se parte do fascínio que Pessoa hoje exerce se deve justamente a essa dimensão fragmentária – “caso tivesse feito do Livro do Desassossego a obra perfeita e completa que quis fazer, o resultado seria provavelmente menos interessante”, sugere Zenith –, nem por isso esse desejo de totalidade deixava de ser genuíno.

O tópico reaparece com particular nitidez no que Pessoa escreveu sobre Shakespeare, que considerava o maior escritor de todos os tempos, mas a quem justamente apontava essa incapacidade de criar um todo perfeito. “Mas ele reconhecia que o falhanço de Shakespeare se devia à sua enorme ambição e ao seu génio”, lembra Zenith. E acrescenta: “É claro que estava a falar de si próprio.”

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