Físico português avança explicação para dois dos grandes mistérios do Universo

O enigma da matéria escura tem 85 anos, o das explosões rápidas de rádio fez uma década. O físico João Rosa e um colega norte-americano desenvolveram um modelo teórico que procura explicar estes fenómenos.

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Ilustração de um buraco negro no centro e da nuvem das partículas axiões à sua volta (em forma de donut) no momento em que ocorre uma explosão de luz João Rosa/Thomas Kephart

Buracos negros, matéria escura e impulsos rápidos de rádio – três fenómenos do Universo com os quais os físicos se têm debatido. Se a física dos buracos negros já é mais conhecida, a matéria escura e os impulsos rápidos de rádio mantêm-se como dois grandes enigmas. Mais de 26% do Universo é matéria escura – que não se vê mas que se sabe existir, desde a década de 30, pelos efeitos que provoca à sua volta – e só 5% é matéria dita “normal” (o resto é uma energia escura, que contraria os efeitos da gravidade). Mas de que é feita a matéria escura ninguém sabe. Tal como não se sabe o que origina os impulsos rápidos de rádio – as maiores explosões luminosas do espaço profundo, detectadas pela primeira vez apenas em 2007. E se do estudo dos buracos negros saísse uma explicação tanto para a natureza da matéria escura como para a origem dos impulsos rápidos de rádio? É mesmo essa a proposta de João Rosa, da Universidade de Aveiro, num artigo na revista Physical Review Letters.

João Rosa, de 35 anos, é físico teórico. Depois do doutoramento na Universidade de Oxford e de um pós-doutoramento na Universidade de Edimburgo, regressou a Portugal em 2012, para a Universidade de Aveiro. É enquanto físico teórico que investiga os buracos negros que terão surgido no início do Universo, nas fracções de segundo após o Big Bang, há cerca de 13.800 milhões de anos.

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O físico teórico João Rosa

Um buraco negro forma-se quando a matéria entra em colapso sobre si própria, criando um objecto denso, que não vemos de forma directa e de onde nem a luz, uma vez lá caída, dada a gravidade exercida, consegue escapar-se. Por exemplo, ao morrerem, estrelas muito maciças originam buracos negros. Têm de ter algumas vezes a massa do nosso Sol para se transformarem nestes objectos superdensos. Além disso, no centro das galáxias, como a nossa Via Láctea, pensa-se que a enorme acumulação de matéria também desembocou em buracos negros monstruosos.

Já a existência de buracos negros primordiais, criados nas fracções de segundo a seguir ao Big Bang, foi postulada pela primeira vez pelo físico britânico Stephen Hawking, em 1971. Estes buracos negros ter-se-ão formado em regiões do espaço com densidades extremamente elevadas, no seguimento do colapso dessas zonas por acção da gravidade. Mais pequenos e “leves” do que os buracos resultantes da morte de estrelas, terão sobrevivido até aos dias de hoje. “São hipotéticos, para já”, explica João Rosa.

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O físico Stephen Hawking (1942-2018) numa palestra em 2007 sobre a origem do Universo Francois Lenoir/Reuters

Voltemos pois ao que o físico português tem investigado nos buracos negros. Quando rodam muito rapidamente, os buracos negros primordiais podem criar à sua volta uma nuvem de umas partículas (também ainda) hipotéticas – os axiões. A existência destas partículas começou por ser proposta no final da década de 70. Depois, em 1983, avançou-se que os axiões poderiam constituir a matéria escura que não conseguimos detectar, que por sua vez já tinha sido proposta pela primeira vez em 1933, pelo físico Fritz Zwicky.

“Os axiões são bons candidatos a serem a matéria escura do Universo, porque não emitem luz em condições normais”, nota João Rosa. “Queria saber se essa nuvem [de axiões] emitia radiação electromagnética. Ninguém tinha ainda considerado isso.”

Se os axiões emitissem alguma radiação electromagnética – ou seja, fotões, luz –, então tornar-se-ia possível apanhar de alguma maneira essas partículas até agora hipotéticas. E, a confirmar-se que os axiões são os principais constituintes da misteriosa matéria escura, desvendar-se-ia também finalmente a natureza desta matéria que tem teimado em manter-se invisível para nós. “Até agora pensava-se que as nuvens de axiões formadas em torno de buracos negros instáveis não emitiriam radiação electromagnética detectável, uma vez que a probabilidade de um axião se transformar espontaneamente em fotões é extremamente pequena.”

Ora os resultados de João Rosa e do norte-americano Thomas Kephart, da Universidade Vanderbilt (EUA), os dois autores do artigo na revista Physical Review Letters, apontam precisamente para a possibilidade de os axiões se transformarem em fotões e, desta forma, tornarem-se passíveis de detecção.

Para não nos perdermos nesta viagem de conceitos nem sempre fáceis para todos, ouçamos as explicações do físico sobre o encontro de dois buracos negros primordiais. “Quando dois destes buracos negros colidem, formam um novo buraco negro que roda muito rápido sobre si mesmo e isso torna-o instável, levando a que produza uma densa nuvem de axiões em seu redor”, diz-nos João Rosa. Nuvem, essa, que tem a forma “curiosa” de um donut.

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Ilustração de um buraco negro no centro e da nuvem de axiões à sua volta (em forma de donut) no momento em que ocorre uma explosão de luz João Rosa/Thomas Kephart

“No interior desta nuvem, alguns axiões decaem, isto é, transformam-se em dois fotões, constituintes da radiação electromagnética. Cada um destes fotões estimula, por sua vez, o decaimento de outro axião da nuvem em mais dois fotões, e assim sucessivamente. Este efeito é semelhante ao que ocorre num laser e gera tantos fotões que a nuvem de axiões torna-se tão brilhante quanto mil milhões de sóis em apenas milésimos de segundo”, prossegue o físico. “A radiação emitida tem um comprimento de onda na gama do rádio do espectro electromagnético, daí observarmos este fenómeno como um impulso rápido de rádio.”

Foi assim a partir da descoberta teórica de que os axiões podiam transformar-se em fotões que acabou por surgir a ligação – por acaso – aos impulsos rápidos de rádio, as grandes explosões de luz vindas do espaço profundo descobertas em 2007, pelo radiotelescópio de Parkes, na Austrália.

Desde então, já se observaram mais de 30 destas explosões muito brilhantes de ondas rádio, que duram apenas alguns milissegundos. Pensa-se que vêm de galáxias muito distantes. Só numa das explosões – designada como FRB121102 – foi possível identificar a galáxia onde ocorreu, situada a cerca de 3000 milhões de anos-luz de distância da Terra. Mas, dentro dessas galáxias distantes, o que causava estas explosões manteve-se um mistério. “Apesar das muitas teorias propostas para as explicar, a sua origem permanecia desconhecida”, refere João Rosa, segundo um comunicado da sua universidade. “Descobrimos que estes impulsos”, diz agora ao PÚBLICO, “podem dever-se a enormes explosões electromagnéticas em torno de pequenos buracos negros que se formaram no início do Universo”. Segundo o modelo proposto pelos dois investigadores, estes impulsos deverão ocorrer principalmente nos centros das galáxias mais densas: “Uma maior densidade tornará mais prováveis as colisões entre os buracos negros primordiais que dão origem aos impulsos.”

A estas enormes explosões electromagnéticas em torno de buracos negros os dois físicos deram o nome BLAST (“explosão”, em inglês), acrónimo de Black Hole Laser powered by Axion SuperradianT instabilities, por causa da semelhança deste novo fenómeno com um laser, por um lado, e da sua natureza explosiva, por outro.

“Para nós que estudamos a física dos buracos negros e da matéria escura, foi surpreendente perceber que o fenómeno que descobrimos também oferece uma nova explicação para os impulsos rápidos de rádio. Assim, se vier a confirmar-se esta explicação, poderão estar resolvidos dois dos maiores mistérios do Universo – de que é feita a matéria escura e o que gera os impulsos rápidos de rádio. A resposta poderá ser a mesma a ambas as questões – axiões e buracos negros primordiais.” Nesse caso, o mistério de 85 anos sobre a matéria escura e o de uma década sobre as explosões rápidas de rádio estariam mais perto do fim.

Resumindo, para mantermos o rumo da viagem: os buracos negros primordiais em grande rotação geram nuvens de axiões e é nessas nuvens que, por sua vez, se geram os impulsos rápidos de rádio. De dentro dos buracos negros continua a não sair nada, como se pensava até agora. É na nuvem de axiões produzida pelos buracos negros, que se encontra à sua volta, que é originada essa radiação.

Os próprios buracos negros primordiais, a confirmar-se a sua existência, um mistério de 47 anos, também contribuirão para a matéria escura que existe e não vemos. “Se estes buracos negros tiverem sido produzidos em número suficientemente grande no Universo primordial, poderão também explicar uma fracção significativa da matéria escura, ainda que provavelmente não a expliquem na sua totalidade”, adianta o físico.

Uma curiosa coincidência

Agora a descoberta do fenómeno BLAST abre a possibilidade de aprofundar a natureza da própria matéria escura. “Detectar estas nuvens de axiões, através dos impulsos rápidos de rádio que emitem, potencia uma forma completamente nova de estudar as propriedades da matéria escura, uma vez que esta, como o próprio nome indica, não emite radiação em condições normais”, sublinha justamente João Rosa.

Se os axiões forem as partículas que constituem a matéria escura, não só se produzem em torno de buracos negros como também se espalharão por todo o Universo, em todas as galáxias. Ainda que não seja explosivo, um processo semelhante ao agora descrito poderá converter esses axiões pelo Universo fora em fotões.

Um dos telescópios com capacidade para detectar essa radiação ténue será o futuro radiotelescópio intercontinental Square Kilometre Array (SKA), que terá antenas espalhadas na Austrália, África do Sul e outros países africanos, e de que Portugal fará parte como um dos membros fundadores a partir deste ano. “Haverá radiação em todo o lado da matéria escura. Essa radiação, esses fotões, que a matéria escura emitirá, em teoria, será difusa, não explosiva. Se for [emitida por] axiões, o SKA poderá detectá-la também na gama do rádio.”

Sendo uma partícula hipotética, o valor da massa do axião não é efectivamente conhecido. Mas esse valor é importante para explicar as propriedades das enormes explosões electromagnéticas à volta de buracos negros. É também importante para determinar a fracção da matéria escura que poderá ser composta por axiões. Teoricamente, para explicar a matéria escura do Universo, já se apontava que valor a massa do axião teria de ter. Acontece que, no modelo proposto pelos dois físicos, esse mesmo valor explica os impulsos rápidos de rádio. “O nosso momento ‘eureka’ foi percebermos que o valor da massa dos axiões em que estes podem constituir a totalidade da matéria escura no Universo coincide com o valor que explica não só o comprimento de onda como a luminosidade e a duração dos impulsos rápidos de rádio.”

Esta coincidência entre as duas coisas levanta a suspeita de que poderá não ser só uma coincidência, considera João Rosa. Já permitiu à equipa fazer “uma previsão concreta” para o valor da massa do axião, que poderá vir a ser testada em laboratório nos próximos anos: deverá ser cerca de 50.000 milhões de vezes inferior à massa do electrão.

Para a Physical Review Letters este artigo merecia um lugar de destaque, pelo que o integrou nas Sugestões do Editor, uma distinção, salienta o comunicado da Universidade de Aveiro, atribuída a cerca de um em cada seis artigos divulgados nesta revista.

Agora é a vez de a física experimental e observacional entrar em campo, para confirmar estas propostas teóricas com a detecção, por um lado, dos axiões em laboratório e, por outro, com a descoberta dos buracos negros primordiais no cosmos, usando o efeito de distorção da luz de estrelas que estiverem atrás desses objectos escuros para denunciar a sua presença. “O ideal seria conseguir detectar estas partículas em laboratório e também procurar os buracos negros primordiais. Espero que o nosso trabalho possa motivar este tipo de experiências.”

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