As mulheres que fazem parte de Miguel Bonneville

O criador português leva ao Palácio do Bolhão, em mais um capítulo do 41.º FITEI, MB#6 2008-2018, duas performances entre o passado e o presente criadas com várias mulheres artistas. Uma autobiografia feita em partilha.

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Dez anos e muitas performances depois, Miguel Bonneville volta a MB#6, o “ponto de viragem” do seu trabalho – e, por arrasto, da sua vida, já que para o criador os dois dificilmente sobrevivem um sem o outro. É um regresso ao passado (a 2008, para sermos mais precisos), mas a um passado que se vai fazer presente no Palácio do Bolhão, no Porto, em mais um capítulo do 41.º Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI). MB#6 2008 apresenta-se na quinta-feira, seguindo-se, na sexta, MB#6 2018, uma nova versão dessa mesma performance, em jeito de actualização e reavaliação.

Ambas integram uma série homónima de criações que Bonneville lançou em 2006, altura em que decidiu assumir o seu trabalho como autobiográfico. Dois anos depois, MB#6 viria a tornar-se no tal “ponto de viragem”. “As cinco performances anteriores tinham um universo de fábula. Eram um pouco encriptadas e andavam à volta das minhas relações amorosas. Achei que tinha de mudar o meu olhar e tentar perceber quais eram as relações mais importantes e duradouras na minha vida”, diz o criador ao PÚBLICO. Foi então que surgiu a ideia de fazer MB#6 em co-criação com seis mulheres artistas – Cláudia Varejão, Joana Craveiro, Joana Linda, Sara Vaz, Sofia Arriscado e Rita Só –, cúmplices de Miguel Bonneville fora e dentro da profissão. Não estão em palco, mas são elas as protagonistas, através das histórias pessoais que contam em vídeo-retratos, dobradas ao vivo por Bonneville. “A minha relação com as mulheres sempre foi mais forte, sempre houve uma proximidade e uma compreensão muito maiores de parte a parte”, refere o performer.

A reflexão sobre “este outro tipo de amor e intimidade” coincidiu com a descoberta dos textos da escritora e filósofa feminista Simone de Beauvoir (1908-1986), encontro que Bonneville andou a adiar por demasiado tempo. “A Beauvoir era a arqui-inimiga da Marguerite Duras e eu era completamente apanhado pela Duras. Andei um bocado às turras com ela, mas depois lá deixei essas tricas de parte e quando comecei a lê-la foi mesmo inacreditável”, conta o criador, que em 2015 se debruçou sobre o universo da autora francesa no espectáculo A Importância de Ser Simone de Beauvoir. “Senti que estava defendido. Todas as minhas inquietações se materializavam na vida e na obra dela.”

Também Beauvoir levou Bonneville a MB#6. Por causa do feminismo, do existencialismo, da autobiografia como motor artístico vital. Finalmente, e sem medos, Bonneville percebeu que o seu trabalho encaixava totalmente na máxima feminista “o pessoal é político”. “Sempre fui muito atacado por ter um trabalho autobiográfico. Aquela coisa do narcisista, por que é que não vais fazer terapia… Diziam tudo e mais alguma coisa sobre aquilo que eu fazia. A obra da Beauvoir sempre partiu da vida dela para falar sobre política, filosofia e sobre morte, uma coisa que também está muito presente no meu trabalho.”

Identidade múltipla

Nas duas versões de MB#6, a de 2008 e a de 2018, a autobiografia de Bonneville é algo que se constrói e desconstrói em partilha. É através das histórias destas mulheres, e com elas, que o criador encontra um lugar e uma identidade – uma identidade plural e fluida, nunca cristalizada. “Somos todos um bocadinho uns dos outros. O que eu faço não é apropriar-me das vozes destas mulheres, mas sim ser atravessado por elas. É sempre a questão da pluralidade de vozes, de existências e de possibilidades que estão dentro de nós, concorde ou não com o que elas dizem.” Nestas performances, Miguel Bonneville conseguiu fazer aquilo que procurava há muito tempo: esvaziar-se, escapar ao ego. O formato escolhido vai nesse sentido, explica. “Quando tenho a função de dobrar ao milímetro cada palavra que estou a ouvir, não posso intervir de maneira nenhuma. É um exercício de não julgar e de deixar que aquelas palavras possam ser ditas.” Aqui, Bonneville é um veículo. “O foco é o que tentamos fazer em conjunto: chegar a uma identidade que seja múltipla.”

Para MB#6 2018, Bonneville pegou no guião de perguntas que usou há dez anos para orientar as conversas com as intervenientes e co-criadoras. Entretanto actualizou-o, e estendeu a convocatória: além de cinco das seis mulheres que integravam a performance de 2008, esta nova versão conta com mais algumas, entre elas a escritora Isabela Figueiredo, a figurinista Mariana Sá Nogueira e actriz e encenadora Maria Gil. Se no primeiro round as questões ligadas à autobiografia e à infância estavam em destaque, nesta segunda volta dá-se mais espaço a temas como o amor, a morte, a identidade e o feminismo. “Há dez anos o feminismo estava muito menos mediatizado e quis perceber o que isso mudou para cada uma delas”, assinala o performer. “Também falámos muito sobre os medos. Percebi, por exemplo, como o medo de serem violadas está tão interiorizado e normalizado, e o quão violento e assustador é isso.”

A ideia de regressar a MB#6 “surgiu quase como uma brincadeira”, conta Miguel Bonneville. Mas a verdade é que tem tudo a ver com aquilo que pauta o seu trabalho. “Percebermos e questionarmo-nos onde estamos agora é um exercício de que estou sempre à procura; é quase um ritual. Perceber o que mudou em mim e, ao mudar em mim, o que mudou na sociedade politicamente, no mundo, no país. Irmos de uma microescala a uma macroescala, e vice-versa, para perceber o presente.” Além de cúmplices, e tal como as autoras e os autores, vivos ou mortos, que Bonneville inscreve nas suas criações, todas as mulheres de MB#6 são uma espécie de âncora. “Cumprem muito este lado do ‘tu não estás sozinho’”, diz. Afinal, o que é pessoal é político.

“Estes trabalhos também têm o lado político da reparação de algo que não deveria estar ou ser assim. Há uma reparação da ideia de que temos de cumprir determinados papéis dentro da sociedade e de como ela não nos permite desviarmo-nos deles sem sermos punidos.” E é isso que move o trabalho (e a vida) de Miguel Bonneville: “A vontade de abrir mais caminhos, mais possibilidades, para não estarmos sempre presos aos mesmos papéis.”

Notícia corrigida às 13h de 14 de Junho na referência a Maria Gil

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