Confia, não verifiques, poupa dinheiro

Trump não faz qualquer distinção entre um líder de uma democracia aliada e um qualquer líder autoritário ou ditatorial.

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1. No primeiro comentário à longa conferência de imprensa de Donald Trump, ainda em Singapura, Christiane Amanpour lembrou a velha máxima de Reagan quando negociou o desarmamento nuclear com Gorbatchov: “Confia mas verifica”. Não há na declaração assinada em Singapura pelos dois Presidentes qualquer compromisso firme com a verificação internacional do cumprimento do acordo. Trump falou vagamente no assunto, dizendo que os americanos têm capacidade para verificar o que for preciso. Neste caso, se Kim Jong-un está a cumprir o processo de desnuclearização com que se comprometeu. Em Washington, a declaração foi recebida, no mínimo, com perplexidade. Justamente, porque não há qualquer compromisso firme em matéria de objectivos e calendários. Os acordos de 1992 e 2005 servem de aviso. Nessa altura, não houve cimeiras entre o Presidente americano (respectivamente, Clinton e Bush) e o seu homólogo coreano (o avô e o pai do actual líder supremo). Pyongyang ganhou tempo e muito dinheiro para alimentar um povo a morrer literalmente à fome, mas não cumpriu os acordos.

Qual é a diferença? As circunstâncias internacionais são outras, mas, como insistiu Donald Trump, a grande diferença é ele próprio. Por uma vez, tem razão. Nada do que se passou em Singapura poderia ter acontecido sem ele. Está a fazer o que prometeu na campanha. Deixar de pagar pela segurança dos aliados na Ásia-Pacífico ou na Europa. Trazer, sempre que possível, as tropas de regresso a casa. Como lembrou, há 32 mil soldados americanos na Coreia do Sul que, por enquanto, ficam lá mas que, logo que seja possível, vão regressar. O desmantelamento nuclear custa muito dinheiro? Pois custa, mas cabe a Seul e a Tóquio pagar a conta, que é do seu interesse directo. O seu mandato comprovou outra característica inédita: não faz qualquer distinção entre um líder de uma democracia aliada e um qualquer líder autoritário ou ditatorial. Se há diferença, parece dar-se melhor com os segundos do que com os primeiros. Despreza as “fraquezas” das democracias. Preside a uma, que lhe limita os poderes, mas não disfarça uma certa inveja de Putin, Xi, Erdogan ou Kim, que não têm de pedir licença a ninguém para dirigir os respectivos países. Na véspera de Singapura, esteve na cimeira do G7, no Quebeque, desentendendo-se com as restantes seis democracias mais desenvolvidas (ou cinco, porque a Itália já se passou para o seu lado) em matéria de comércio internacional, a sua grande batalha para reduzir os défices comerciais “tremendos” que os EUA mantêm com todas elas, mais a China.

2. Para a maioria dos especialistas americanos, o compromisso de Kim com a “total desnuclearização” é vago e o compromisso de Trump de pôr fim aos exercícios militares conjuntos com os seus aliados parece ser firme e imediato. Vêem uma cedência desnecessária a Pyongyang e a Pequim, que fará tudo para afastar os EUA de uma região que considera dever estar na sua esfera de influência, ou melhor, sob o seu diktat. Em Tóquio e em Seul, deve ter provocado calafrios. Outra das características da política externa do Presidente: os exercícios de guerra são caros e proteger os aliados também. Isso não o impediu de forçar a mão do Congresso para aumentar o orçamento da defesa para um valor já comparável aos da Guerra Fria: quase 700 mil milhões de dólares por ano, incluindo a sua modernização tecnológica para lá do que é imaginável em qualquer outro país. A sua ideia da relação dos EUA com o mundo reduz-se a dois factores: a força da sua economia e o poder das suas Forças Armadas.

3. Os Direitos Humanos são mais uma vítima da política externa de Trump. No caso da Coreia do Norte, a mais demencial prisão colectiva de um povo, a questão, praticamente, não esteve presente na cimeira. Perante a insistência dos jornalistas, Trump recorreu a uma fórmula que já tinha utilizado anteriormente no caso da Rússia. Quando lhe perguntaram, ainda na campanha, como podia ser amigo de um Presidente russo que mandava abater jornalistas e adversários, a resposta foi mais ou menos esta: não é só ele que manda matar pessoas. Na Coreia do Norte, reconheceu que a situação é “dura”, mas há outras situações noutros países, que também são “duras”. É um novo padrão que nenhum Presidente, republicano ou democrata, alguma vez adoptou desde a II Guerra, mesmo que, na prática, as coisas fossem diferentes.

Feitas as contas, o Presidente americano obteve o que pretendia. Os resultados agradam à população americana que votou nele. Menos dinheiro, menos soldados, menos risco nuclear. O que vai fazer Kim com ela? Essa é a maior das interrogações. Para já, o Presidente norte-coreano ganhou o primeiro prémio: em seis meses conquistou uma inesperada legitimidade internacional, oferecida pelo país mais poderoso do mundo.

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