Maio de 68: da fotografia como fábrica de imagens icónicas

A exposição Icônes de Mai 68, na Biblioteca Nacional de França, refaz a história da cobertura fotográfica do movimento para mostrar que a memória visual do Maio de 68 é também uma construção cultural.

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Os cartazes do “atelier popular” que ocupou a Escola de Belas Artes de Paris foram desenhados a partir desta fotografia de Jacques Haillot Jacques Haillot

Dia 6 de Maio de 1968: em frente à Sorbonne, o jovem Daniel Cohn-Bendit, vestindo blazer de espinha e camisa branca [na verdade é cor-de-laranja, mas já lá vamos], dá de caras com um polícia de intervenção equipado a preceito, olha-o directamente nos olhos e atira-lhe um sorriso mais convidativo do que provocador, como se lhe perguntasse sem palavras: “De certeza que não preferias estar deste lado?”. Captada a preto e branco pelo fotógrafo de guerra Gilles Caron, esta é talvez a imagem icónica por excelência do Maio de 68, reproduzida até à exaustão em jornais, revistas e capas de livros sempre que se assinala, como agora, um aniversário redondo da revolta estudantil.

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GILLES CARON

O curioso, no entanto, é que, ao contrário de outras imagens de Caron logo difundidas na imprensa, quase ninguém viu esta fotografia em 1968. Só veio a ser publicada em meados de Junho desse ano numa revista de pequena tiragem destinada a profissionais de fotojornalismo.

O percurso que retrospectivamente a transformou num símbolo visual da revolta estudantil constitui o primeiro núcleo da exposição Icônes de Mai: les images ont une histoire, comissariada por Audrey Leblanc e Dominique Versavel, que pode ser vista até final de Agosto na Biblioteca Nacional de França (BNF), em Paris, e que além de fotografias, provas de contacto, cartazes, catálogos e outros documentos, reúne também uma extensa selecção dos jornais e revistas que cobriram os acontecimentos de Maio de 68, e depois os seus  subsequentes aniversários.

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Cohn Bendit sorrindo a um polícia. A hoje célebre foto de Gilles Caron passou despercebida em Maio de 1968 GILLES CARON

Mas o propósito da exposição não é propor mais uma história fotográfica do movimento, é antes desocultar os mecanismos de construção mediática que foram compondo aquela que é hoje a memória visual colectiva do Maio de 68. Um processo que envolveu os critérios de escolha das agências de comunicação, das redacções dos jornais ou da indústria das revistas, mas também as contradições de um fotojornalismo então mais do que nunca empenhado em prestar testemunho objectivo do presente, ao mesmo tempo que ia alimentando um sistema que procurava desesperadamente imagens excepcionais e icónicas. 

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O cartaz da mostra, com a foto de Jean-Pierre Rey

Voltando à fotografia de Gilles Caron, o que salta à vista no pólo inicial da exposição, intitulado La fabrique d’un icône, é que este fotógrafo da recém-criada agência Gamma, que ele próprio ajudara a fundar em 1967, esteve longe de ser o único dos profissionais presentes nesse dia a aperceber-se do potencial icónico da cena do estudante rebelde a sorrir para o CSR [sigla de Compagnies Républicaines de Sécurité]. Pelo contrário, poucos o terão falhado, a julgar pela quantidade de imagens desse mesmo momento que esta mostra conseguiu recolher. E ao contrário do que sucedeu com a foto de Caron, só tardiamente popularizada, muitos desses trabalhos foram publicados em jornais e revistas logo nos dias seguintes.

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Os cartazes do “atelier popular” que ocupou a Escola de Belas Artes de Paris foram desenhados a partir da fotografia de Jacques Haillot

No entanto, se a cena é sempre a mesma, não há duas fotografias iguais. Nas páginas da Paris Match, por exemplo, Georges Melet mostra Dany le Rouge de sorriso já um pouco mais aberto, e por isso também menos insinuante, e a opção pela fotografia a cores destaca o olho azul arregalado e o seu indomado cabelo ruivo, a condizer com a camisa, que afinal, vê-se agora, é cor-de-laranja.

Mas a fotografia que teve maior impacto na época foi talvez a tirada por Jacques Haillot, um fotógrafo que cobriu a Revolução dos Cravos e  que viria a morrer em 1998 num acidente de viação em Portugal. Quando Haillot premiu o disparador, o sorriso do líder estudantil já tinha dado lugar a uma genuína gargalhada. E é a partir desta sua imagem, reproduzida no L’Express, que o “atelier popular” que ocupara a Escola de Belas Artes de Paris, onde foi produzida muita da mais conhecida iconografia do Maio de 68, criou os célebres cartazes com a cara de Cohn Bendit e os slogans “Somos todos ‘indesejáveis’” e “Somos todos judeus e alemães”.

Uma glória efémera, porque em 1978, quando se comemoraram os dez anos do movimento, era já a foto de Gilles Caron, e não a de Haillot, que começava a monopolizar os dossiers que a imprensa dedicou à efeméride. Um processo de consagração que começou discretamente em 1970, quando a imagem foi seleccionada para uma exposição de cinco fotógrafos da Gamma.

Caron já era então admirado, sobretudo entre os colegas de ofício, pelas suas imagens da fome no Biafra durante a guerra civil nigeriana, ou pela sua cobertura da Guerra dos Seis Dias em Jerusalém. Mas a sua consagração definitiva como grande fotógrafo do Maio de 68 só ocorrerá em 1977, quando a Gamma, então a celebrar o seu décimo aniversário, dedica uma grande homenagem ao seu malogrado repórter, que em Abril de 1970 desaparecera sem deixar rasto no Cambodja, numa zona controlada pelos Khmers vermelhos.

A sua imagem do face a face paradoxalmente distendido entre o campeão da insolência juvenil e o representante da sisuda autoridade do Estado veio mesmo a ser seleccionada, em 1999, para o livro Les 100 Photos du Siècle, da jornalista e cineasta Marie-Monique Robin.

A "Marianne de 68"

Mas se a história desta imagem revela os meandros da construção de um ícone visual, outro capítulo da exposição – De la photographie d’actualité au symbole – apresenta-nos o caso ainda mais estranho da chamada “Marianne de 68”. Os media contribuíram certamente para amplificar a aura de Cohn Bendit, mas quando chegaram a ele, os acontecimentos na Faculdade de Nanterre – que estiveram na origem da criação do Movimento do 22 de Março, e em parte serviram de gatilho ao próprio Maio de 68 – já tinham começado a consagrá-lo como o mais carismático dos jovens líderes da contestação estudantil. Já a celebridade conquistada pela “Marianne de 68”, que na verdade se chamava Caroline Bendern e era uma jovem aristocrata inglesa, mostra como essa busca de ícones visuais trouxe também ao primeiro plano da fotografia (em sentido literal e figurado) personagens que eram pouco mais do que figurantes de ocasião.

Captada pelo fotógrafo Jean-Pierre Rey, a imagem de uma bela rapariga empoleirada às cavalitas de um manifestante e a agitar uma bandeira da Frente de Libertação Nacional vietnamita – destacando-se da mole de estudantes e operários que desfilavam na grande manifestação unitária de 13 de Maio – é hoje talvez a única fotografia do Maio de 68 cuja celebridade é comparável ao Cohn Bendit de Gilles Caron. Não admira. É uma bela fotografia. Quase lhe poderiam ser endereçados esses versos que Sophia dedicou a Ifigénia: “(…) E o seu rosto voltado para o vento,/ Como vitória à proa dum navio,/ Intacto destrói todo o desastre”.

No entanto, e uma vez mais, a valorização desta imagem (escolhida, aliás, para o cartaz da exposição) levou o seu tempo. E o mérito de Rey não foi ter descoberto uma rapariga de bandeira em punho e pressentido que esse motivo daria uma imagem mais forte e surpreendente do que outras possíveis abordagens fotográficas da manifestação. Ou também foi, mas essa intuição partilhou-a com vários dos fotojornalistas presentes. Se uma semana antes muitos tinham percebido que o encontro de Cohn Bendit com o polícia era a fotografia do dia, neste dia 13 quase se diria que estavam a competir num concurso temático a ver quem tirava a melhor fotografia de uma rapariga em cima dos ombros de alguém e com uma bandeira na mão.

Mas ao contrário de outras imagens de raparigas com bandeiras que tiveram difusão mais célere, mas também mais efémera, a fotografia de Rey só foi publicada mais de um mês após ter sido tirada, num número da Paris Match que saiu a 15 de Junho e assinalou o reaparecimento da revista, que tinha sido ela própria afectada pelas greves e estivera um mês fora das bancas. Esta tardia reportagem fotográfica da manifestação ocupa duas páginas, com quatro imagens em pequeno formato, incluindo a “Marianne” de Rey e uma outra de uma rapariga em ombros, mas empunhando um cartaz. Já a foto em destaque, ocupando uma página inteira e parte doutra, essa mostra… uma rapariga em ombros agitando uma bandeira. Mas a dela é a bandeira negra dos anarquistas, que a revista terá achado que sublinhava melhor o radicalismo dos manifestantes, e que fez acompanhar da legenda: “Pela primeira vez numa manifestação popular, liceais e bandeiras negras”.   

A adolescente anarquista não tardará, todavia, a ser esquecida, e em 1978 é já a imagem de Caroline Bendern que serve de ícone visual feminino a um movimento cujas reivindicações libertárias também se estendiam à sexualidade. Escolhida então para a capa de um livro de Patrick Poivre d’Arvor sobre a cobertura que os fotógrafos da agência Gamma tinham feito dos grandes acontecimentos mundiais de 1968, a “Marianne” de Jean-Pierre Rey chega também finalmente à capa da Paris Match, que dez anos antes lhe tinha reservado um modesto papel secundário.  

Uma sexagenária Caroline Bendern voltará em 2008 à capa da revista, desta vez posando junto à foto de 1968,  para uma vez mais contar a sua história. Chegara a Paris vinda de Nova Iorque, onde conhecera Andy Warhol e Lou Reed e trabalhara como manequim, e estava em Paris a fazer um filme quando se juntou à “manif” de dia 13. Doíam-lhe os pés, pediu a um rapaz (no caso, o pintor e poeta Jean-Jacques Lebel) que a levasse às cavalitas, e quando viu que estava a ser observada por fotógrafos, o instinto de manequim levou-a a fazer pose. E acrescenta: “Maio de 68 não teve grande importância na minha vida, mas essa foto sim”. Quanto mais não seja porque o avô, aristocrata e milionário, a deserdou. E os vários processos que ela própria depois interpôs contra Rey a exigir direitos pela fotografia não deram em nada. 

Mas na perspectiva desta exposição, o ponto mais curioso do seu depoimento é a sugestão de que o avô a deserdou em 1968 porque ficou furioso quando a viu na capa da Paris Match, algo que não pode ter acontecido, mas que contribui para reforçar a ideia (falsa) de que a imagem aquiriu de imediato grande notoriedade.

Muito devedora dos trabalhos de investigação da historiadora Audrey Leblanc, Icônes de Mai: les images ont une histoire mostra como a procura e o favorecimento mediático de imagens com elementos icónicos, não sendo surpreendente numa época em que a cultura popular, na música, no cinema, na publicidade, se estava a especializar na produção de ícones – em 1967, Guy Debord chamara “sociedade do espectáculo” a esse novo mundo povoado de “imagens-objectos” –, condicionou a memória visual do Maio de 1968 (e o próprio facto de falarmos hoje apenas do Maio de 68, esquecendo os acontecimentos talvez menos glamourosos de Junho, é já um resultado dessa memória culturalmente construída).

O reverso desta espécie de darwinismo fotográfico em que vencem os mais icónicos também ajuda a explicar, por exemplo, o apagamento quase completo da fotografia a cores nas evocações visuais do movimento, uma “amnésia mediática” sublinhada noutro capítulo da exposição, onde se desmente com abundantes exemplos a convicção retrospectivamente criada de que o arquivo fotográfico do Maio de 68 era essencialmente um acervo de imagens a preto e branco.

E o núcleo final de Icônes de Mai chama a atenção para um exemplo óbvio de imagens que foram desprezadas justamente por delas estarem ausentes quaisquer ícones reconhecíveis: as fotografias, muito numerosas mas muito pouco reproduzidas, da chamada “noite das barricadas”, de 10 para 11 de Maio.

São imagens que mostram como nenhumas outras a dimensão da revolta. Mas estas fotografias, tiradas à noite, de multidões anónimas e de ruas esventradas e bloqueadas por pilhas de parelelos, tábuas, grades, até carros voltados ao contrário, não tinham uma leitura tão imediata, nem se prestavam tão eficazmente a servir de símbolo visual do espírito do tempo, como a insolência de um jovem estudante a sorrir para um polícia ou o dramatismo hierático de uma nova e bela Mariana (irmã da que Delacroix pintara em celebração dos “três gloriosos” dias da revolução de Julho de 1830) a conduzir o seu povo juvenil à liberdade.

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