Morreu Anthony Bourdain, o chef-celebridade que mais do que comida dava a conhecer cultura

O norte-americano tinha 61 anos e foi encontrado morto no quarto de hotel, em França.

Anthony Bourdain em Lisboa

O chef e apresentador de televisão Anthony Bourdain morreu nesta sexta-feira. Tinha 61 anos. “É com grande tristeza que confirmamos a morte do nosso amigo e colega Anthony Bourdain”, informou a estação televisiva CNN, num comunicado divulgado esta manhã.

Bourdain estava em França, em Estrasburgo, a gravar um episódio para a série Parts Unknown e foi encontrado inconsciente pelo amigo e chef francês Eric Ripert, no quarto do hotel, avança ainda a CNN. De acordo com o canal norte-americano, Bourdain suicidou-se, algo que foi já confirmado pelo procurador Christian de Rocquigny du Fayel.

Bourdain ganhou fama na televisão e tornou-se uma das figuras mais conhecidas do mundo da gastronomia, graças à sua abordagem descontraída, revelando, nos seus programas, curiosidades não só da comida em si, mas também da cultura em que esta se inseria. "Se olharem para o que as pessoas comem, como comem, em que circunstâncias, o que cozinham, o que lhes dá prazer, aprende-se muito sobre essas pessoas. É uma maneira rápida, talvez a mais rápida, de conhecermos uma cultura", disse em 2011, quando passou por Lisboa

Ao longo dos anos, cultivou uma imagem de bad boy e foi um dos principais precursores da era dos chefs de cozinha como celebridades. 

Algumas figuras da gastronomia vieram já lamentar a morte de Anthony Bourdain. “Ele quebrou mesmo o molde, avançou a conversa do mundo culinário”, escreve no Twitter Jamie Oliver. “Trouxe o mundo para as nossas casas e inspirou tantas pessoas a explorar culturas e cidades através da sua comida”, acrescenta Gordon Ramsay.

Bourdain começou por apresentar A Cook's Tour (na Food Network), um programa em que visitava países exóticos e provava a cozinha local, e passou depois para No Reservations (no Travel Channel), em que visitava também sítios dentro e fora dos Estados Unidos. O programa – Não Aceitamos Reservas, em português – chegou a ser transmitido em Portugal, na SIC Radical, e foi talvez aquele que catapultou Bourdain para o estatuto de chef-celebridade.

Em 2012, anunciou que iria mudar-se para a CNN e aí começou a apresentar o programa Parts Unknown (Anthony Bourdain: Viagem ao Desconhecido). Ainda no ano passado, o chef esteve no Porto, para gravar um episódio que foi para o ar em Julho. Jantou tripas à moda do Porto no restaurante A Cozinha do Martinho, experimentou uma “refeição caseira de lampreia” e passou pelo café O Afonso para uma francesinha. Entre os anfitriões locais, esteve com o português José Meirelles, “antigo patrão” de Bourdain na Brasserie Les Halles, um bistrô francês em Nova Iorque.

"Estou chocado", reage o empresário português, por telefone. "A última vez que estivemos juntos foi durante um almoço divertido em casa da minha mãe, em Celorico de Basto." Lembra ainda o momento em que lhe passou pela frente o currículo do chef, quando procurava alguém para a cozinha do Les Halles. "Gostei dele principalmente pela personalidade", conta. "Nas alturas de grande stress na cozinha, em que berramos uns com os outros, Bourdain era como uma lufada de ar fresco. Reagia sempre com humor ou de forma sarcástica, criando um ambiente muito melhor."

Américo Pinto, dono do restaurante Gazela, também esteve com Anthony Bourdain e recorda que este era "uma pessoa afável apesar da sua presença intimidatória (pelo físico)". Pinto diz que foi "um choque" a notícia da sua morte e recorda a presença do chef durante as gravações: "Foi sempre profissional. E fora das gravações foi sempre muito amável", conta. "Estava rodeado de gente e foi uma surpresa quando me disseram quem ele era. Eu não falo inglês, mas pelas expressões vi logo que ele tinha gostado. Ele adorava porco — foi a uma matança de porco também”, acrescenta.

Já duas outras vezes o chef tinha visitado Portugal para os seus programas: em 2009 foi explorar os Açores – e provou o cozido das Furnas – para Anthony Bourdain: No Reservations e, dois anos depois, passou por Lisboa para o mesmo programa. Foi ouvir fado com António Lobo Antunes (“É um autor que admiro muito”, explicou numa conferência de imprensa, em Lisboa), comeu um polvo que pescou com uma família de pescadores e passou pela Cervejaria Ramiro, na companhia dos chefs José Avillez e Henrique Sá Pessoa.

Vinte e cinco anos de sexo, drogas e mau comportamento

Mesmo antes do salto para a televisão, Bourdain tinha-se já tornado um nome bastante famoso, por ter levantado a cortina para alguns aspectos menos conhecidos do mundo da cozinha, primeiro com o artigo Don’t Eat Before Reading This, publicado na revista New Yorker, que deu origem ao best-seller Kitchen Confidential, em 2000. Foi publicado em Portugal como Cozinha Confidencial.

O livro, na descrição do próprio chef, conta a história de "vinte e cinco anos de sexo, drogas e mau comportamento em haute cuisine". Aborda, por exemplo, a sua própria luta com o consumo de droga (heroína e cocaína) – um tema sobre o qual sempre falou abertamente –, retrata o lado obscuro da cozinha e descreve, em grande parte, os anos em que trabalhou na cozinha do restaurante Les Halles.

Criado em New Jersey, Bourdain começou desde cedo a interessar-se pela cozinha. Quando aos nove anos viajou por França, pela primeira vez, num cruzeiro, já começava a associar a comida à descoberta. Numa entrevista ao Guardian, lembra que ficou com o irmão mais novo no carro, enquanto os pais jantavam num restaurante, na comuna de Vienne. "Reagi pedindo ostras e pratos que eles consideravam repulsivos e tornando-me cada vez mais aventureiro nos meus gostos", contou ao jornal britânico.

Depois de se formar em 1978, no Culinary Institute of America, Bourdain foi viver para Nova Iorque, onde passou pela cozinha de vários restaurantes, até se tornar chef executivo do Les Halles, nos anos 1990. Casou-se e divorciou-se por duas vezes – e do segundo casamento, com Ottavia Busia, teve uma filha, agora com 11 anos.

Há dois anos que namorava com a actriz e realizadora Asia Argento, uma das mulheres que acusaram Harvey Weinstein de assédio e outros crimes sexuais, no final do ano passado. No seguimento do escândalo em Hollywood e da disseminação do movimento #MeToo, o chef veio pronunciar-se contra o assédio sexual na restauração. Depois de cerca de 20 mulheres apresentarem queixas contra o chef executivo do Besh Restaurant Group, John Besh – obrigando o próprio a demitir-se –, Bourdain partilhou nas redes sociais o trabalho de investigação levado a cabo pela Nola.com e The Time-Picayune anunciando "o princípio do fim da cultura institucionalizada de meatheads [brutamontes] na área da restauração".

Em entrevista ao Guardian, Bourdain revelou que ao longo da vida os seus gostos tornaram-se "cada vez mais simples". "As comidas que realmente me fazem feliz, que têm um verdadeiro apelo emocional, são a simples taça de massa, noodles picantes vendidos no Vietname ou o rolo de carne da avó de alguém", contou ao jornal.

"Na verdade não quero saber o que as pessoas dirão de mim quando morrer. Imagino que [o autor] Jerry Stahl faria uma história divertida – mesmo que não necessariamente lisonjeadora – com detalhes tenebrosos", disse o chef em 2017, em entrevista ao New York Times. com Mara Gonçalves e Luís Octávio Costa

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