Só faltava o assassino racista no esgoto a céu aberto

Quando a vítima (Alcindo Monteiro) é esquecida e o perpetrador (Mário Machado) aparece quase que celebrado em todo o lado estamos perante o sinal claro de um falhanço coletivo.

Eu tinha decidido escrever esta crónica começando pela vítima e não pelo perpetrador. E é pela vítima que começarei.

Alcindo Monteiro teria hoje 50 anos. Em 1995 era um jovem pacato de 27 anos, que trabalhava numa oficina no Barreiro, que poupava para um dia construir uma vivenda, e que fora cozinheiro durante o serviço militar. Nascera português em Cabo Verde e depois de vir para Portugal com os pais tivera de conquistar a nacionalidade portuguesa de novo. Era discreto e tinha apenas uma extravagância conhecida: gostava de dançar. Naquele dia 10 de junho de 1995 veio a Lisboa para dançar. Foi assassinado por um grupo de criminosos racistas que o espancaram até à morte por não ser branco. Fará este domingo 23 anos e por isso eu já tinha decidido escrever sobre Alcindo Monteiro.

Mataram Alcindo Monteiro mas, por isso mesmo, nós não esqueceremos Alcindo Monteiro. Porque é esse o dever de memória que temos perante as vítimas. E espero que quando se cumprirem 25 anos sobre a sua morte a sua memória seja lembrada em Lisboa — como está consagrado no programa eleitoral que venceu as eleições autárquicas na capital — e que em seu nome se estabeleça um programa de iniciativas de objetivo anti-racista. Só assim podemos garantir que os perpetradores nunca saiam vitoriosos.

Alcindo Monteiro não teve oportunidade de levar a vida pacata de que gostava. Os seus sonhos foram cortados pela raiz. A sua família tem de lidar com a dor há mais de duas décadas.

Por outro lado, um dos criminosos que o matou está em todo o lado na TV, nos jornais e nas redes sociais. Chama-se Mário Machado e está nas notícias por causa do futebol, mas poderia ser outra coisa qualquer. Durante todos estes anos, sempre que não esteve preso por um dos seus vários crimes — não só as agressões que levaram à morte de Alcindo Monteiro, mas diversas outras condenações por extorsão, posse de arma ilegal, ofensas à integridade física, coação agravada e discriminação racial — Mário Machado conseguiu sempre um acesso fácil ao tempo de antena por que tanto anseia. Seja para mostrar as armas ilegais que tem em casa, como há uns anos. Seja porque a televisão pública o decide entrevistar, como há poucos dias, para lhe dar oportunidade de dizer que quer estar mais ativo na vida do seu clube de futebol. Seja porque se decide candidatar à chefia de uma claque de adeptos — cujos anteriores líderes estão a ser investigados por sequestro e terrorismo, nada menos do que isso — e então aí está em todo o lado.

No café onde entrei há pouco a televisão mostrava em letras garrafais o título: “Extrema-direita chega às claques de futebol”. Chega?! Agora é que deram por isso? Já se esqueceram que Alcindo Monteiro foi assassinado precisamente num dia de final de Taça de Portugal, por um grupo de skinheads que tinha assistido ao jogo umas horas antes integrados numa claque de futebol, Mário Machado incluído?

Para cúmulo, as televisões e os sites que mostram um “comunicado” de Mário Machado noticiam também que no mesmo dia e local do lançamento da candidatura à claque de futebol o criminoso racista que ajudou a matar Alcindo Monteiro vai também lançar um novo partido nacionalista. Se isto se passasse em qualquer outra área que não o jornalismo, que tem por obrigação informar-se para poder informar, esta dificuldade em juntar 2+2 seria ingenuidade. Aqui nem irresponsabilidade se poderia chamar: é cumplicidade. Cumplicidade com uma estratégia escancarada para usar as audiências em torno das notícias do futebol como forma de aproveitamento político em favor de um assassino. Mas ninguém se dá conta de que estão a promover um sujeito que é apenas e unicamente conhecido, não pelas suas ideias, não pelas suas realizações, não por nada que alguma vez tenha pensado ou dito, mas exclusivamente por ser um criminoso que ajudou a matar um concidadão inocente que tinha a pele de outra cor?

No esgoto a céu aberto das notícias sobre futebol nada parece ter já gravidade. E por isso ninguém se pergunta como pode uma claque ser apoiada por uma instituição de utilidade pública como é um clube de futebol, ainda que em crise, e ao mesmo tempo admitir a candidatura à sua presidência de um criminoso. E ninguém se pergunta como podem jornalistas fingir que caem na armadilha de divulgar essa candidatura apenas e só porque dá audiências.

Quando a vítima é esquecida e o perpetrador aparece quase que celebrado em todo o lado estamos perante o sinal claro de um falhanço coletivo. Que provocará novas vítimas, estejam certos. Vítimas que vos ficarão na consciência quando as audiências já estiverem esquecidas.

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