Göbeklitepe ou a teoria do big bang da civilização

Na mítica Mesopotâmia, um sítio arqueológico está determinado em baralhar ideias feitas sobre o aparecimento da civilização. A descoberta do mais antigo templo do mundo, com 12 mil anos, parece sugerir que primeiro veio a religião e depois veio tudo o resto. Chamam-lhe o “ponto zero do tempo” — é a revolução da “revolução neolítica”.

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Pode tirar-se a terra ao homem, mas não pode tirar-se o homem da terra. É assim que encontramos Mahmut Yildiz: a terra que já foi da sua família espera para ser de toda a humanidade — por enquanto, pertence ao governo turco e Mahmut é guia voluntário. É também uma espécie de anfitrião informal dos visitantes.

Aborda-nos com um dossier onde fotos contam a epopeia de Göbeklitepe, que começou com um equívoco e terminou a revolucionar a história da Humanidade. Há 12 mil anos, antes da agricultura, do sedentarismo, da vida em comunidade (a primeira cidade surgiria três mil anos mais tarde), já havia, afinal, religião e Göbeklitepe é a (monumental) prova disso: o primeiro santuário do mundo, no Sudeste da actual Turquia. Que é como quem diz, na Mesopotâmia, no Crescente Fértil onde todos aprendemos que começou a civilização. As comparações estão preparadas e com “estrelas” planetárias para que não nos percamos no tempo: Göbeklitepe é sete mil anos mais antigo do que Stonehenge e 7500 anos mais antigo do que as grandes pirâmides do Egipto — não tem a mesma monumentalidade, mas como exigir mais de um templo construído na Idade da Pedra? Chamam-lhe o “ponto zero no tempo” — é uma espécie de big bang da humanidade.

Mahmut Yildiz parece um profeta tranquilo — as barbas brancas e a região bíblica onde estamos (e já lá iremos) tornam fácil esta associação. As suas palavras chegam-nos com a tradução possível dos nossos companheiros turcos, ritmadas pelo movimento da mão direita, grande, calosa, morena. As mãos que desde criança trabalharam esta terra, no topo da montanha. Ele queixava-se do esforço, agora, 66 anos, não a larga. Foi em 1963 que se percebeu pela primeira vez que havia “algo” em Göbeklitepe, mas nenhuma atenção lhe foi dada — a equipa da Universidade de Chicago pensou que era herança bizantina, um posto avançado do exército e algumas campas. No entanto, havia “algo” antes deste “algo” palpável, as populações já encontravam aqui “algo” que ia além do que os olhos viam. “As pessoas vinham aqui fazer pedidos, já tinham ideia de que se concretizariam”, conta Mahmut. O “altar” era uma árvore, que segue frondosa, onde prendiam laços; a fertilidade era o desejo mais recorrente; a fertilidade parece ser o simbolismo da primeira estátua aqui encontrada. Foram Mahmut e o pai quem a encontraram, corria o ano de 1985, em mais um dia de lavoura. Levaram-na ao museu de Sanliurfa (Urfa), que a acolheu e colocou em exibição, sem grande convicção. Quando o arqueólogo alemão Klaus Schmidt, que andava a escavar outro sítio nas redondezas, foi entregar algumas das suas descobertas à instituição, viu a estátua e ficou intrigado. Em 1994, depois de negociações com os proprietários (“Falámos com um advogado que nos tirou o medo. Disse para deixarmos avançar, se não aparecer nada eles deixam tudo como estava, se encontrarem alguma coisa pode beneficiar a aldeia. No segundo ano encontraram uma parede, no terceiro aparece a pedra com o touro, a raposa... O governo comprou-nos a terra.”), começaram as escavações e rapidamente se percebeu que as aparências, também neste caso, enganavam: o que ali se foi encontrando era muito mais antigo do que inicialmente se pensava — e muito mais monumental.

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Mahmut Yildiz: a terra que já foi da sua família espera para ser de toda a humanidade Andreia Marques Pereira

Mahmut trabalhou nas escavações até se reformar, em 2005, e aqui segue como uma espécie de guardião do templo. Orgulhoso daquilo em que se tornou o campo difícil onde apareciam rochas que eles tentaram partir tantas vezes sem sucesso. E ainda bem, eram já restos do mais antigo complexo sagrado conhecido tentando voltar à superfície do tempo — e da história. “Deixámos uma herança para o mundo, por isso estamos felizes. Espero que se façam mais descobertas.” É o desejo de Mahmut, num espaço onde os desejos têm, aparentemente, longa reputação de se concretizar. Cremos que Mahmut tem outro: que a UNESCO, já na próxima sessão, entre os dias 21 e 28 de Junho, reconheça Göbeklitepe como Património Mundial.

O sobressalto do divino

Göbeklitepe, a 15 quilómetros de Sanliurfa, capital da região homónima na Anatólia Oriental (fronteira com a Síria, fonte de dois rios míticos, o Tigre e o Eufrates), tem uma nova cara. É recente, somos dos primeiros a vê-la, dizem-nos. Se há poucos anos os autocarros com os visitantes chegavam praticamente até ao local das escavações, agora ficam obrigatoriamente a pelo menos 800 metros, a distância entre o novíssimo centro de acolhimento e o santuário, o primeiro um espelho do segundo. E se até há poucos meses as ruínas estavam expostas aos caprichos meteorológicos, receberam recentemente uma pouco unânime cobertura branca: “A protecção dos sítios arqueológicos é sempre um desafio”, nota o arquitecto e arqueólogo Moritz Kinzel, do Instituto Arqueológico Alemão, que acompanha as escavações, “e esta parece-me uma solução interessante porque se pode ter uma visão total do sítio. Agora o desenho...” Goste-se ou não, cumpre o objectivo de preservação e acessibilidade — e é o primeiro sinal do santuário para quem chega vindo da entrada, pela estrada de paralelos (também polémica — os detractores não queriam uma marca tão permanente na paisagem; os promotores defendem-se, dizendo que é 100% reversível e que é necessária para os shuttles, uma vez que nem todos os visitantes podem caminhar) que se desenha na crista dos montes rochosos.

Um passadiço suspenso rodeia a “cratera” de onde se arrancou do esquecimento o complexo primevo — vemo-lo de uma varanda, portanto, ruínas à primeira (e segunda...) vista anárquicas, quase como que se acotovelando. Göbeklitepe é o mais antigo exemplar de monumento megalítico criado pelo homem com um propósito ritualístico encontrado, mas são as imagens que vemos no centro de interpretação que nos dão a dimensão do local. A reconstituição do sítio acompanhada pela contextualização histórica que nos leva desde a última Idade do Gelo, passando pelos primeiros passos de domesticação de cereais e da vida comunitária, até à agricultura e aldeias (e Göbeklitepe terá surgido no final da última Idade do Gelo) é indispensável para nos remetermos à nossa insignificância: num mundo sem escrita, sem metal, sem cerâmica, sem estruturas mais complexas do que cabanas, tentamos imaginar o espanto que provavelmente assaltava os visitantes coevos ao depararem-se com os altos muros de pedra, as colunas preenchidas por baixos relevos de animais. Seriam a manifestação do divino e o divino era algo que apenas se começava a pressentir (ou, pelo menos é o que a arqueologia nos diz actualmente — mas tudo poderá mudar).

Novamente no topo da “colina com barriga de panela” (a tradução literal de Göbeklitepe), há painéis que vão explicando o que vemos. Nós lemo-los do avesso: fazemos a visita em contramão mas com razão — guia-nos Moritz Kinzel. “Assim vamos seguindo a cronologia das escavações”, diz. E esta cronologia é-nos dada pelo A, B, C, D com que os templos foram nomeados por ordem de descoberta — não de idade. Aliás, a idade não é linear em nenhum dos edifícios (que obedecem a uma mesma regra de construção: estrutura oval organizada em torno de dois massivos pilares em forma de T): cada um é uma amálgama construtiva de diferentes fases, sendo que as paredes interiores são sempre mais recentes. “É uma característica do Neolítico”, refere Moritz, “renovam dentro, não fora”. E nestas quatro estruturas encontram-se até três paredes de pedra, como cascas de cebola, e pilares em forma de T (mais pequenos do que os centrais) ou menires que as pontuam. O maior é o C, com um diâmetro de 25 metros e as três paredes concêntricas, sendo que a mais interior ainda ostenta nove pilares em forma de T (“terão sido mais”, acredita Kinzel) de dimensões mais modestas que os dois que se erguem no centro, como num pedestal — um corredor provavelmente atravessaria as várias “camadas” de pedra até ao interior (no B, por exemplo, a entrada seria por cima). O edifício D não era tão grande, mas como está mais bem conservado destaca-se, sobretudo as duas colunas centrais, agora seguras por uma estrutura de “muletas” de madeira.

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Estas colunas são fonte de alguns dos mistérios de Göbeklitepe. Primeiro, como se transportaram os monólitos, que chegam a ser cinco vezes mais largos do que fundos e ter dimensões de 5,5 metros de altura e 16 toneladas de peso (sabe-se que a pedra não foi extraída aqui mas perto), numa altura em que não havia sido inventada a roda e os animais não tinham sido domesticados? Depois, como se sustinham num chão de calcário artificialmente polido encaixados num sulco de apenas 15 centímetros profundidade? Neste último caso, a hipótese mais provável, aventa Kinzel, será a de que existiriam telhados (em madeira), que ajudariam o equilíbrio. Simultaneamente, são as colunas que mais elementos iconográficos ostentam. Elas próprias são encaradas como antropomórficas, como figuras estilizadas de seres humanos, os ombros a sobressaírem e as mãos a aparecerem no pilar como se à altura do ventre, tapado — “As colunas em T parecem simbolizar o Homem [não há género], o corpo humano, e todas juntas formam uma comunidade”. Em baixos-relevos, alguns toscos outros mais delicados, surgem imagens de abutres, escorpiões, raposas, javalis — uma relação directa com o que viam ou um significado místico, representando poderes sobrenaturais? “As figuras humanas podem ser guardadas por eles, podem estar a apaziguá-los ou incorporá-los, como um totem”, explica Kinzel.

A religião como motor da (r)evolução

Se há quatro edifícios expostos à curiosidade dos visitantes, há outros quatro a serem ainda escavados, aos quais o acesso está interdito — estão na outra encosta do monte, também com cobertura branca. “Há oito estruturas expostas, mas nenhuma completamente”, explica Kinzel, “por decisão de Klaus Schmidt”. “Ele quis deixar o sítio assim para que mais tarde, com novas tecnologias, os cientistas possam voltar aqui e fazer novas descobertas.” Cobertos de terra estarão pelo menos outras 12 estruturas “de tamanho igual ou superior” aos escavados, revelou um estudo geomagnético, numa área de 80 hectares.

Foram sendo construídas umas ao lado das outras, aparentemente depois de as anteriores terem caído em desuso (e sido enchidas com detritos) e isto passou-se ao longo de um milénio, “prova de que as pessoas se ocupavam deles”, numa altura em que as aldeias ainda não existiam e as cidades não eram sequer sonhadas. Por enquanto não foram encontrados em Göbeklitepe sinais de assentamento — estruturas domésticas sim, mas não de ocupação contínua. “Não as esperávamos, estamos a olhar com mais cuidado”, reconhece Kinzel. São edifícios rectangulares, mais pequenos, provavelmente abrigos dos construtores, de “funcionários” e, mais tarde, de pastores — um está mesmo na órbita dos quatro templos e é o único que se pode observar, como que encaixado na encosta. Foi num destes edifícios que se encontraram os três únicos restos humanos, esqueletos inteiros, do sítio; de resto, não há sinal de necrópole. Nem de fogueiras para cozinhar, nem de agricultura para alimentar as centenas (milhares?) de pessoas que terão sido necessárias para construir o sítio e que depois aqui terão vindo em peregrinação.

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Durante décadas acreditou-se que uma parte da humanidade (precisamente nesta região do Crescente Fértil) tinha abandonado a caça e recolecção e adoptado a agricultura (por questões climáticas ou até um golpe de génio); com essa mudança teriam vindo os aglomerados populacionais, o desenvolvimento de novas ferramentas e a criação da cerâmica — e este progresso material teria dado espaço ao aparecimento da arte e da religião, os grandes marcos civilizacionais. Contudo, várias descobertas mais recentes têm teimado em dar a volta a essa teoria e Göbeklitepe é mais uma pedrada — uma revolução na revolução neolítica. A existência de um gigantesco templo pode significar que a religião organizada surgiu antes da agricultura, a religião pode ter sido o motor da (r)evolução. “Para esta construção juntaram-se mais pessoas num mesmo local do que antes na história da humanidade”, explica Moritz Kinzel, “e teve de existir uma organização, alguma hierarquia... Göbeklitepe está a ensinar-nos novas coisas sobre o Neolítico.”

E esta é outra grande vantagem de Göbeklitepe. Há ainda muito para descobrir, embora nos próximos dois anos, pelo menos, as escavações estejam paradas. Por enquanto, cataloga-se o que já foi encontrado e estudam-se as estruturas. “Cada edifício conta uma história”, sublinha Kinzel, e é preciso conhecê-la antes de se voltar a escavar. Por exemplo, o que levou ao abandono destes locais? Sabe-se que não houve um grande evento que provocou a deserção deste complexo, “cada edifício foi abandonado em momentos distintos”. E o que realmente acontecia aqui? As teorias de Schmidt apontam para encontros ritualísticos ao longo do ano das várias comunidades que viviam dispersas na região, com oferendas, talvez com grandes festividades (há recipientes que podem ter sido de cerveja), mas não há certezas. Excepto a de que Göbeklitepe veio mudar o paradigma do Neolítico — e que pode continuar a fazê-lo. Ou seja, a revolução neolítica (para muitos o evento mais importante para a humanidade depois do domínio do fogo) parece não ter terminado.

A Fugas viajou a convite do Doguss Group (mecenas de Göbeklitepe)

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