Lisboa já se tornou um jogo de tabuleiro

Segundo Vital Lacerda, o criador, Lisboa é “um jogo de estratégia, económico e histórico” com “um pouco de política e de intriga”. A campanha de "crowdfunding" já arrecadou mais de 200 mil euros.

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Todos os dias, Vital Lacerda adormece com um bloco de notas ao lado da cama. As ideias podem surgir a qualquer hora, mesmo a meio de uma tranquila noite de sono. Já os dias são preenchidos com a criação de protótipos de jogos inspirados em interesses pessoais. Nos últimos quatro anos, o português decidiu projectar Lisboa num tabuleiro e não desistiu até ficar satisfeito com o desenho final.

"Lisboa", como o nome indica, é sobre a cidade onde o "freelancer" nasceu e onde vive até hoje. Mas o tempo em que decorre o jogo não é actual. De repente, estamos em 1755. À nossa frente temos uma cidade destruída por um terramoto, a que se segue um incêndio que lavrou durante três dias e um tsunami que devastou o que ainda restava da cidade. O maior desafio agora é reconstruir Lisboa com a ajuda de três homens, entre eles, Sebastião José de Carvalho e Mello, mais conhecido como Marquês de Pombal. O secretário de Estado do Reino decide reconstruir uma cidade com características muito próprias, baseada na filosofia iluminista. Ruas largas e prédios semelhantes são a nova imagem da zona da Baixa. Depois da recuperação, o objectivo é conseguir os melhores lugares na cidade para abrir espaços comerciais que permitam vender produtos e desenvolver a economia. Há ainda barcos que transportam o ouro do Brasil, matéria-prima muito importante para a reconstrução.

Este é o cenário do mais recente jogo de tabuleiro de Vital Lacerda, um projecto que reflecte todos os elementos que descrevem este momento histórico para a cidade. “Lisboa tem uma história muito interessante com a reconstrução da cidade em 1755 e, por isso, pensei que podia dar um bom tema para um jogo de tabuleiro”, explica o designer gráfico em entrevista ao P3. “Tenho a sorte de Lisboa ser, neste momento, uma cidade que está na moda e isso atrai mais público para conhecer um pouco da sua história”, acrescenta.

Um interesse pessoal deu, assim, origem a um jogo explicado em 24 páginas, a maioria dedicada aos factos históricos, do livro de regras que vai ser traduzido em várias línguas antes de chegar aos mercados internacionais. Resta-nos saber as características do jogo que pretende “levar a história da cidade ao mundo inteiro”. Segundo o criador, Lisboa é “um jogo de estratégia, económico e histórico” com “um pouco de política e de intriga” à mistura. Trata-se ainda de um jogo complexo essencialmente dirigido a "gamers" porque Vital Lacerda acredita que será mais fácil para “pessoas que estão habituadas a jogar”.

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Produzido e distribuído pela Eagle-Gryphon Games, uma editora americana que tem trabalhado com Vital Lacerda nos seus últimos três projectos, "Lisboa" é produzido na China, está também espalhado por várias convenções do mundo inteiro e envolve parceiros internacionais, desde editores e "developers" até um ilustrador irlandês que vive na Austrália.

Este sucesso é visível na campanha em curso na plataforma de “crowdfunding” Kickstarter. O valor mínimo a arrecadar era 50 mil dólares. No entanto, a 20 dias do fim da campanha, já foram atingidos os 217 mil dólares (mais de 200 mil euros), o que equivale a 2000 jogos vendidos. Lisboa está previsto ser lançado em Junho na Origins Game Fair, uma feira internacional que decorre em Ohio, nos Estados Unidos, e terá um custo de 100 euros.

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Vital Lacerda

Quem tiver mais perucas ganha

"Lisboa" pode ser descrito, em primeiro lugar, como um jogo de cartas com tabuleiro cujo objectivo é “os jogadores competirem entre si pelos melhores lugares da cidade”. Cada jogador lança uma carta com a imagem de uma personagem histórica. Esta pode ser o Marquês de Pombal, ligado ao comércio e às leis, o Rei D. José I, ligado ao clero, ou o Manuel da Maia, engenheiro ligado à reconstrução da cidade de Lisboa. E é cada um destes protagonistas que vai determinar o passo seguinte no jogo. “No caso do Marquês de Pombal, o jogador pode vender os produtos das suas lojas aos barcos. Já quem tem a carta do Rei está ligado a uma acção do clero que dá vantagens no jogo ou vai inaugurar edifícios públicos que sejam construídos na cidade de Lisboa”, explica Vital Lacerda.

E, como em qualquer jogo, os participantes devem ganhar o maior número de pontos. Até aqui Vital Lacerda quis que "Lisboa" fosse um jogo diferente e mais engraçado. As perucas foram a solução e a justificação tem também um conteúdo histórico. “Na altura do terramoto, só os mais ricos é que podiam ter mais do que uma peruca, por isso quem tiver mais perucas no jogo é quem ganha”, revela.

Lisboa demora cerca de três horas a jogar e precisa de alguma preparação, mas a chave para o entender são as ligações que existem entre as cartas e os eventos que decorreram na cidade. “As pessoas têm de pensar em termos históricos como funcionam as suas acções. Esta é a forma de introduzir o tema às mecânicas do jogo”, explica o designer gráfico.

Uma profissão "estranha"

Quando jogava Monopólio, Vital Lacerda, publicitário de formação, ainda não se imaginava a criar jogos de tabuleiro mas a paixão estava lá. Um dia, já não tinha mais vontade de jogar as mesmas partidas e procurou outras alternativas na internet. Encontrou mais de 200 jogos de tabuleiro, entre eles, estava "Age of Steam". Este jogo de comboios tinha mapas de vários países do mundo, nenhum relacionado com Portugal. De jogar até desenhar uma adaptação para o jogo foi um passo. O mapa de Portugal teve bastante sucesso e, assim, nasceu um criador de jogos de tabuleiro – “uma profissão que é estranha hoje em dia, mas que é possível”.

Depois de trabalhar em agências de publicidade durante quase 20 anos, o actual "freelancer" de 49 anos trabalha em casa e dedica a maioria do seu tempo aos jogos de tabuleiro. Esta é uma mudança que Vital Lacerda começou há cerca de dez anos quando lançou o primeiro jogo sobre vinhos, outra das suas paixões. O sucesso do jogo no mercado, em 2007, abriu outras portas e foi um incentivo para continuar. "Lisboa" é o sexto jogo de tabuleiro do português e na gaveta estão vários protótipos à espera para serem produzidos. “Este é um trabalho progressivo. Neste momento, estou com três projectos em mão e tenho jogos projectados até 2020”, revela ao P3. O denominador-comum é a presença portuguesa em cada jogo. O segredo é a tecnologia, encontrada em Tabletopia, que permite jogar online e desenhar os jogos, testando-os com pessoas do mundo inteiro.

Até aqui parece fácil desenvolver um jogo de tabuleiro, mas não é verdade. “A criação do jogo tem mais a ver com pesquisa sobre o tema do que com inspiração. Não tenho um plano, o segredo é experimentar, por isso é que os jogos demoram bastante tempo a construir. Na primeira vez que se põem na mesa normalmente nunca funcionam e são precisas várias tentativas até ficar satisfeito”, diz Vital Lacerda.

Apesar da expansão a nível mundial, estes jogos de tabuleiro ainda não têm muitos “clientes” em Portugal. “Os meus jogos pertencem a um nicho de mercado pequeno e fechado que devem chegar apenas a 80 portugueses. Já o público mundial são 50 mil pessoas e o mais fiel deve ser metade”, explica. No entanto, para o português “o sucesso não é medido pelo número de pessoas que compram, mas sim pelo número de pessoas que estão à espera de mais um jogo, como é o caso do Lisboa”.

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