Eutanásia: um “não” sereno

Não devemos nem podemos arrumar a questão da vida e da morte, da doença e do sofrimento, do amor e da compaixão, num debate redutor e simplista.

1. Consciência, “con-sciência”

Todos já lidámos, estamos a lidar ou teremos de lidar, de uma maneira ou de outra, junto dos que amamos e dos que simplesmente nos rodeiam, com a morte, a doença, o sofrimento. Todos conhecemos situações dificílimas e duríssimas de doença (terminal ou não), de enorme sofrimento físico e psíquico, de quase total alienação ou ausência de um nosso próximo. São situações muito complexas e delicadas, que mexem com o mais fundo de nós, com a essência da humanidade e da vida, com as mais belas e as mais sombrias emoções e convicções. Não devemos nem podemos arrumar a questão da vida e da morte, da doença e do sofrimento, do amor e da compaixão, da dignidade e da indignidade, do humano e do desumano, num debate redutor e simplista, num dogmatismo lauto e primário. Creio que devemos – e que felizmente podemos – fazer silêncio, falar baixinho, estudar, conhecer, pensar, ponderar, sentir, escutar. Ouvir, ouvir, ouvir. Escutar, escutar, escutar. E pacientemente, serenamente, deixar que a consciência – não no sentido de “com ciência” ou “com saber”, mas no sentido de “ciência com”, de “saber com”, ou seja, de “saber com o outro”, de “sageza partilhada”, de “sentido comum”, de “ciência fraterna e solidária” – nos fale, nos murmure, nos interpele.

2. Nem tudo é eutanásia

Este processo de escuta e debate é especialmente difícil, por haver muita confusão conceitual, muito “tribalismo” de rede social e muito, mas mesmo muito, preconceito. Grande parte dos casos que muitos julgam cair ou recair no domínio da eutanásia consubstanciam afinal situações pacíficas de recusa de tratamento excessivo e desnecessário, que, a ocorrer, redundaria em pura obsessão terapêutica.

3. Não há direito à morte

Disseminou-se a ideia – e também a terminologia (as palavras fazem caminho e imprimem “carisma”) – de que, entre os direitos, as liberdades e as garantias, figuraria um direito de nova geração, um direito de “última geração”: o direito à morte. Mas não vislumbro como, filosófica, antropológica ou juridicamente, possa subsistir um tal “direito”. Argumenta-se habitualmente com o suicídio, que seria uma liberdade individual e cuja tentativa não é sequer punida pela ordem jurídica. Se o suicídio fosse uma liberdade, se a pessoa tivesse o direito de se matar, então deveria ter também o direito de pedir a morte – alega-se. Eis o fundamento e o substrato do direito à morte. Mas o suicídio não é nem uma liberdade nem um direito. É uma mera possibilidade fáctica. Tal como o homicídio, que, sendo proibido, nem por isso deixa de ser cometido. Quando a ordem jurídica não pune a simples tentativa de suicídio, isso não significa que ela reconhece a liberdade da pessoa se matar. Não. Ela não pune a tentativa de suicídio – o suicídio falhado – porque a pena a aplicar seria ineficaz e contraproducente. Como é óbvio, e daí que não haja punição, prender alguém que se tentou suicidar em nada contribuiria para evitar e combater o suicídio. Não há um direito a morrer por acção própria. Muito menos deve aceitar-se um direito a morrer por acção alheia.

4. Dignidade vs. Indignidade

Muitos dos que defendem a eutanásia legalizada põem a questão no patamar da dignidade, da morte digna ou indigna. Mas vale a pena meditar sobre esta dicotomia “digna-indigna”. Ninguém, nenhum ser humano, perde dignidade por estar doente, por ter uma deficiência, por estar incapaz, por estar agonizante. Continua a ser uma pessoa, um semelhante, um próximo, em tudo igual aos demais e, em especial, na sua dignidade enquanto ser humano. Haverá decerto sofrimento que nos parece intolerável, inaceitável e absolutamente injusto, mas ele em nada reduz a dignidade da condição humana. Não há mortes dignas nem indignas, porque a dignidade está na pessoa que morre, não no acto ou no processo da morte, por mais violento ou trágico que este se afigure.

5. O exercício prático: riscos e irreversibilidade

De um ponto de vista prático – que não filosófico ou jurídico –, a maior objecção à eutanásia é a sua irreversibilidade. Argumento que, aliás, em caso diverso – o da proibição da pena de morte –, ajuda a convencer muitos dos que até aceitariam a pena capital. Para a eutanásia, porque é morte, não há remédio nem reversão. A eutanásia, nunca é demais lembrá-lo, é sempre irreversível. Que garantias temos da lucidez e consciência do pedido? Que garantias temos da absoluta fidelidade daqueles que a aceitam executar? Que vemos nós nas experiências comparadas da Bélgica e da Holanda? O risco de extensão informal das situações permitidas e de normalização ou banalização são óbvios. O risco de abusos e de enganos também. E mais, sistemicamente, que dizer da evolução de um serviço nacional de saúde que ofereça como solução plausível a eutanásia?

6. O argumento “ad terrorem”: a religião

É triste a disseminação do argumento “papão” de que quem está contra a legalização da eutanásia está dominado por uma visão religiosa e sagrada da vida. Pode até estar, alguns estarão, e se estiverem, têm todo o direito a estar. Mas quem está a favor também tem uma concepção da vida e uma mundividência pessoal, religiosa ou não, que quer fazer valer no espaço público, impondo a sua concepção moral, filosófica ou antropológica.

7. Um “não” sereno

Por tudo isto e muito mais que não cabe aqui, sou serenamente contra a eutanásia. Ao debate português, falta maturação, pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do Parlamento português e de alguns dos seus partidos. Esta não é uma questão de sacristia, mas não pode ser tratada como mais uma questão de secretaria.

8. Para lá do tempo e do espaço

Noutra dimensão, já fora da conjuntura espácio-temporal, fica um juízo do nosso tempo, da vertigem, da materialidade, do utilitarismo, dos tabus. Não será afinal tudo isto um afloramento de um desejo ancestral, humano e paradoxalmente religioso, de matar a morte?   

SIM e NÃO

SIM. Ricardo Fonseca. Recebeu ontem o Prémio Carreira da Faculdade de Economia do Porto. Gestor de excelência na área dos transportes, destacou-se à frente dos STCP, APDL e Metro do Porto.

NÃO. Crise política italiana. A insistência num ministro da Economia que defende a saída do euro mostra bem os riscos da coligação de populistas em Itália. Um fantasma que nos continuará a assombrar.

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