Elza Soares voltou para incomodar

Deus É Mulher é o novo álbum de Elza Soares. E é Elza outra vez magnífica, com sede de luta e revolução.

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Todas as revoluções têm uma canção, e Elza Soares tem muitas canções para muitas revoluções MAURICIO SANTANA/GETTY IMAGES

“Cê vai-se arrepender de levantar a mão pra mim”, avisava Elza Soares em A Mulher do Fim do Mundo (2015/2016), o disco maior do que a vida e maior do que a morte que finalmente nos pôs na rota desta mulher e cantora extraordinária, nome indispensável da música brasileira. Esse mesmo verso foi entoado por dezenas de mulheres em frente à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, em Março, quando se manifestavam contra o assassínio da vereadora e activista Marielle Franco. Todas as revoluções têm uma canção, e Maria da Vila Matilde tornou-se mais do que um acerto de contas com a violência doméstica: fez-se grito comunal, aqui também na vida e na morte, contra a violência patriarcal, racista, antidemocrática.

É neste Brasil da revolução e da contra-revolução, simultaneamente tão progressista e tão tirânico, que Elza Soares dá início (e que início, senhoras e senhores) ao novo álbum Deus É Mulher. “Minha voz, uso para dizer o que se cala/ O meu país é meu lugar de fala”, lança-se ela a capella, voz rugida e imponente, antes de entrar a guitarra de rendilhado tropicalista, bem torneada por um festim de sopros e percussões. Elza Soares, 80 anos, canta sobre o lado feio do Brasil (“Pra quê sujar o chão da própria sala?”), puxando para a linha da frente o termo “lugar de fala”, conceito usado em movimentos feministas,  anti-racistas, anticolonialistas e LGBTQI que serve para reivindicar um espaço de expressão e protagonismo para grupos historicamente silenciados e marginalizados.

Esta primeira canção, O que se cala, marca o tom do novo disco. Deus É Mulher é menos à beira do abismo do que A Mulher do Fim do Mundo. Menos chapada na cara. Menos corpo golpeado pela vida, a tentar pôr-se de pé e a conseguir, elegante na sua violência. Deus É Mulher é Elza Soares rejuvenescida e ainda mais politizada, com conhecimento de causa, à procura de uma mobilização e transformação colectivas. O prometido é devido: “E o que me fez morrer vai-me fazer voltar”, disse ela em Dança, uma das canções irrepetíveis de A Mulher do Fim do Mundo. Ela voltou, por ela e por “um mundo inteiro pra gritar”, e talvez por isso este segundo álbum de originais seja tão irrequieto. Tão efervescente, com um som cheio, com tanta coisa a acontecer no terreno amplo do samba-rock-jazz-rap-electrónica.

Coadjuvada por um elenco de músicos e compositores como Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Alice Coutinho, Guilherme Kastrup e Rodrigo Campos, Elza está mais rock. Isso percebe-se rapidamente pelas guitarras em frémito de Exú nas escolas, uma joint venture com o rapper Edgar em que se denuncia a intolerância religiosa e a pseudo laicidade do Estado brasileiro. Assunto repescado mais à frente em Credo, movido a guitarras esgatanhadas a pedirem headbaging por uns segundos, no meio de bizarrias electrónicas.

Depois há sexo a dobrar com Banho e Eu quero comer você, uma espécie de segundo capítulo de Pra Fuder, de A Mulher do Fim do Mundo. Mas agora Elza celebra de um modo explicitamente feminista a sexualidade das mulheres. E nisso Banho, samba transviado, samba omnívoro com letra da artista brasileira Tulipa Ruiz e com o levantamento percussivo do bloco afro de São Paulo Ilú Obá De Min, é épico. É força bruta e desejo em bruto. Estamos aqui para foder, não para sermos fodidas. “Misturo sólidos com os meus líquidos/ Dissolvo pranto com a minha baba/ Quando tá seco logo umedeço/ Eu não obedeço porque sou molhada.”

O empoderamento e discurso feministas — cada vez mais fervilhantes no Brasil, dentro e fora da música — continuam na feérica Língua solta (“Vamos juntas que tem muito pra fazer/ Sem fingir que dá, que dói, é só dizer/ Somos duas nós e todas nós”) e em Um olho aberto, rock electrónico sinuoso e peganhento em que Elza chuta para trás teorias essencialistas de género (“Cada um inventa a natureza/ Que melhor lhe caia”). E ainda há Dentro de cada um, canção-manifesto incontornável, ameaçadora e vital. Elza, Elza Soares, e a sua voz de outro mundo. Voz pugilista que é carne, osso, pele e vísceras. Voz que galvaniza, voz com as marcas de uma vida inteira: “A mulher de dentro de mim já cansou desse tempo/ A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco”. Aqui está ela, a colocar a mulher como alavanca simbólica dos feminismos que podem sair de toda a gente (“A mulher vai sair/ E vai sair/ De dentro de quem for/ A mulher é você”).

Se é certo que neste álbum a parte instrumental — menos esculpida, mais volumosa e em trânsito — dá menos espaço e tensão à voz de Elza Soares do que em A Mulher do Fim do Mundo, também é verdade que é ela que continua a brilhar. E é ela o fio condutor, a alma punk, da canção final, Deus há de ser, onde se ouve a frase que intitula o disco, “deus é mulher”. Todas as revoluções têm uma canção, e Elza Soares tem muitas canções para muitas revoluções. Ela voltou, preparadíssima: “Nós não temos mesmo sonho e opinião/ Nosso eco se mistura na canção/ Quero voz e quero o mesmo ar/ Quero mesmo incomodar.”

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