“Referendo ao aborto é oportunidade histórica para abandonarmos de vez as políticas morais do passado”

Especialista em Políticas Sociais e Identidade da Queen’s University de Belfast, Lisa Smyth olha para a restritiva legislação irlandesa sobre o aborto como uma “tentativa de subordinação da sociedade a uma visão patriarcal da nação”.

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Irlandeses votam despenalização do aborto esta sexta-feira CLODAGH KILCOYNE / Reuters

A Irlanda tem uma das legislações mais restritivas da UE sobre o aborto. É o resultado da enorme influência que a tradição católica sempre teve na sociedade irlandesa?
Essa realidade vai mais além da influência do catolicismo. Tem a ver com a própria história do país e com as poderosas elites que estiveram no poder durante as primeiras décadas do Estado [anos 50 e 60]. A Igreja Católica faz parte dessa elite, claro, mas houve outros interesses que levaram à introdução da emenda constitucional de proibição do aborto. Nomeadamente uma tentativa de subordinação da sociedade irlandesa a uma visão muito patriarcal da nação, baseada na família convencional enquanto modelo replicável a toda a população. Foi, através disso, um mecanismo de contenção das ideias modernas e liberais.

Nos últimos 30 anos as tentativas de reforma da legislação apenas foram consideradas na sequência de casos dramáticos, que perturbaram a população. É um espelho do conflito moral existente na sociedade irlandesa sobre este tema?
Sim, de um conflito moral intenso sobre a identidade de género, sobre a sexualidade e sobre a família irlandesa. A 8.ª emenda à Constituição [1983] tentou estabelecer um autêntico código de honra para a nação, interpretando aquilo que o país era e o que queria ser, numa época em que não havia oposição, nem havia um movimento pró-escolha. E numa altura em que o papel da mulher na sociedade começava a mudar no resto do mundo e em que a República da Irlanda dava os primeiros passos na União Europeia e era obrigada a deixar cair o seu modelo proteccionista, a emenda foi usada por quem estava no poder como veículo de resistência à mudança e como mecanismo de promoção da campanha moral para o estabelecimento do tal código de honra.

Mas estando essa mudança em marcha, por que é que os sucessivos governos irlandeses se recusaram a mudar a lei até aos dias de hoje?
A verdade é que a emenda teve um efeito muito eficiente nos primeiros anos, gerando uma espécie de pânico moral. Os partidos acabaram por aceitá-la. Todos os políticos que falavam a favor da despenalização do aborto ou que assumiram uma abordagem mais liberal para esta questão começaram a ser atacados e humilhados publicamente. E o assunto deixou de ser discutido politicamente, por ser demasiado arriscado em termos reputacionais.

Essa realidade encontrou paralelo na sociedade civil ou apenas no meio político?
Foi semelhante na sociedade civil. O tema tornou-se demasiado sensível e controverso. Mesmo durante os anos 90. A própria linguagem à volta do tema tornou-se eufemística – quando se falava no assunto a palavra “aborto” era muitas vezes suprimida. Só com os casos mais dramáticos que referiu e com a atenção – e condenação – internacional que eles suscitaram é que o código de honra começou a ser gradualmente enfraquecido. Aos poucos o debate foi evoluindo e a classe política começou envolver-se de uma forma mais aberta.

Os tempos mudaram e ainda recentemente a Irlanda aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo [2015]. Pertence ao grupo dos que vêem no referendo um teste decisivo à transformação liberal da sociedade irlandesa?
Sim. É um momento histórico e a legalização do casamento gay foi um passo muito importante nessa direcção. Hoje vemos pessoas a debater questões relacionadas com a sexualidade, com a igualdade de género, com o acesso igualitário ao casamento ou com a visão da mulher enquanto alguém que pode ter autoridade sobre a sua vida reprodutiva. Ouvir a opinião das pessoas sobre o aborto, através do referendo, pode ser uma oportunidade histórica para abandonarmos de vez as políticas morais do passado e darmos um novo horizonte às mulheres na sociedade irlandesa.

É verdade que a Igreja Católica tem estado pouco interventiva na campanha para este referendo?
Em comparação com a forma como se envolveu no início dos anos 80, sim, tem sido bastante mais discreta. A Igreja tem estado ausente do debate público, da televisão e não tem feito intervenções públicas a dizer às pessoas como devem votar. Claro que o tema é discutido internamente e nas celebrações religiosas. Mas a verdade é que a Igreja não tem procurado causar impacto fora desse âmbito.

As sondagens mostram que há mais de 20% de indecisos ou não-declarados. Devemos preparar-nos para uma surpresa ao estilo “Brexit”?
Confesso que estou um pouco preocupada com o tamanho real dessa fatia de eleitores indecisos e com a persistência de posturas inflexíveis de muitas pessoas que nunca tiveram de se confrontar com casos de gravidezes impraticáveis. Para muitos irlandeses o tema do aborto ainda é demasiado abstracto. Por isso prefiro não fazer previsões.

Em caso de rejeição da despenalização do aborto, acredita que o debate pode morrer durante os próximos anos?
Penso que não. Situações trágicas relacionadas com gravidezes problemáticas vão continuar a acontecer na Irlanda e a 8ª emenda – para além de não oferecer soluções – apenas causa agitação. O tema continuará a merecer a atenção internacional e isso manterá a Irlanda sob pressão.

É o texto da 8.ª emenda que não oferece soluções ou é a interpretação que a classe política, judicial e social irlandesa faz dele que as não oferece?
Ambos. Porque a letra da lei cria uma espécie de conflito entre direitos dentro da Constituição, que merecem interpretação. E a legislação existente, que resultou dessa interpretação, é bastante pragmática e impraticável. Não serve os interesses de ninguém e tem gerado repetidos episódios de opressão vergonhosa e lastimável sobre as mulheres.

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