Eutanásia: é tempo de respeitar a autonomia de todos nós

Que tipo de leis queremos a regular a nossa vida? Leis que consagrem uma ética única e exclusiva do mundo e suprimam toda a diversidade que abunda nos nossos dias, tal como a lei actual? Ou uma lei abrangente, respeitadora da diferença e que permita a coexistência entre visões diferentes do mundo?

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Marcelo Leal/Unsplash

“Adeus a todos os meus amigos e família que amo. Hoje é o dia que escolhi para partir com dignidade, por causa da minha doença terminal, um cancro cerebral horrível que me roubou tanto… mas roubaria muito mais…”. Assim escrevia Brittany Maynard, no seu último post no Facebook, no dia em que recorreu ao suicídio assistido para terminar a sua vida. Com 29 anos e um tumor cerebral incurável, Brittany viveu as suas últimas semanas com os sintomas a agravarem-se: tinha cada vez mais crises convulsivas, dores constantes e sofria episódios semelhantes a “AVC” que, a cada vez, lhe roubavam mais uma das suas faculdades e um pouco da autonomia.

Brittany informou-se e descobriu o que a esperava. Viveria, aproximadamente, seis meses. E à medida que o tempo passasse, sabia que ia definhar. Perderia a força nos membros, a capacidade para andar e manusear objectos comuns. Perderia a capacidade para falar, deixando de comunicar eficazmente com a sua família. Perderia a capacidade para deglutir, teria que ser entubada e alimentada por uma sonda. Usaria fralda. No final, acamada, teria muitas crises convulsivas diárias, o que levaria os médicos a prescreverem doses tão elevadas de medicação que estaria permanentemente sedada, sem consciência do mundo à sua volta. No final, a morte, inevitável. Nada, em nenhuma parte do mundo, em nenhum hospital ou centro de investigação, com nenhum tratamento normal ou experimental, poderia impedir a evolução da sua doença. Nada.

Brittany decidiu que esta não seria a sua história. Que morreria no dia que escolhesse, rodeada de amigos e família, confortável, sem dores e, acima de tudo, consciente. Foi apoiada pelas pessoas que amava na sua decisão. E assim sucedeu, a 1 de Novembro de 2014.

Felizmente a medicina dos nossos dias dispõe de instrumentos capazes de mitigar uma boa parte do sofrimento e da perda de autonomia associados a muitas doenças crónicas e fatais. É nossa responsabilidade colectiva, não só lutar por cuidados de fim de vida acessíveis e universais, como também criar as condições sociais e económicas para que eles se desenvolvam. Mas a medicina não é suficiente para todos. Não foi para Brittany. Uma jovem de 29 anos, com acesso ao melhor da medicina americana, com poder económico, rodeada de amor incondicional da família, uma mulher feliz que viajou pelo mundo e que não tinha doença psiquiátrica. Existiram outras e existirão sempre mais Britannys que escolherão antecipar a morte face a um final e um sofrimento anunciado. Não deverá ser um dever nosso estar do seu lado, respeitando a sua dignidade, a sua autonomia e a sua livre escolha?

Viver em liberdade e democracia implica necessariamente que posições antagónicas coabitem. Os opositores da morte assistida, incluindo a Igreja Católica, têm toda a legitimidade para expressarem publicamente os seus valores e até de tentarem convencer, tanto os seus fiéis, como a restante sociedade, a não recorrerem à eutanásia. A diferença é um sinal de vitalidade da nossa democracia. Mas há outra discussão premente: que tipo de leis queremos a regular a vida de todos? Leis que consagrem uma ética única e exclusiva do mundo e suprimam toda a diversidade que abunda nos nossos dias, tal como a lei actual? Ou uma lei abrangente, respeitadora da diferença e que permita a coexistência entre visões diferentes do mundo? A esta discussão, os detractores da morte assistida e a Igreja não podem fugir. Acham aceitável que a sua moral religiosa seja imposta, por força da lei, a toda a sociedade? Consideram compatível a consagração de uma democracia informada com a intromissão na lei, de crenças e práticas da sua fé? 

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