O trabalho liberta?

Sim, é certo que o trabalho liberta e o dinheiro também. Mas não só: o reconhecimento das relações laborais é fundamental. Não é justo que no fim do trabalho desenvolvido os bolseiros vivam angustiados(as) por não terem qualquer apoio que permita confiar num estado social

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Chuttersnap/Unsplash

“Arbeit Macht Frei” é uma frase em língua alemã inscrita no portão do campo de concentração nazi de Auschwitz-Birkenau que significa, traduzida para língua portuguesa, “O Trabalho Liberta”. O mesmo título tem o documentário de Edgar Pêra do ano de 1993, só que no final encontrámos um ponto de interrogação e, portanto, a pergunta coloca-se assim: “O Trabalho Liberta?".

O documentário apresenta diferentes perspectivas sobre o poder (ou não) libertador do trabalho. Entre os diferentes participantes encontram-se várias figuras de relevo da vida pública portuguesa, tais como Herman José, José Luís Judas e Agostinho da Silva. De todas as perspectivas, legítimas e interessantes, retiram-se talvez duas conclusões, ao mesmo tempo paradoxais e complementares — o trabalho pode ser libertador por si só e não é o trabalho que liberta, é o dinheiro. Na minha perspectiva, o voluntariado poderá ter uma função libertadora, quanto mais não seja da consciência; quanto ao trabalho remunerado, como o próprio nome indica, é expectável que a um determinado serviço corresponda um pagamento, garante do efeito libertador que tod@s desejamos.

Portugal é um país que se orgulha do seu estado social. E o estado social assenta no pressuposto que cada cidadão contribui para um bem geral, ou melhor, que cada cidadão transfere para o Estado (através de impostos sobre os rendimentos) uma determinada quantia para que possa estar protegido nas surpresas indesejáveis que a vida oferece. É por isso que, entre o trabalho remunerado, é o contratualizado com o Estado que se espera que seja justo e exemplar, na medida em que se não for o Estado a dar o exemplo como poderá exigi-lo aos empregadores privados?

Entre as instituições do Estado, é sobre a escola que recai maior responsabilidade e credibilidade, e sobre a qual se espera que promova um contributo importante para as vidas futuras dos cidadãos. Afinal, é por um lado o veículo preferencial do Estado nos conhecimentos que os(as) cidadãos(ãs) devem adquirir, acompanhando-os(as) desde tenra idade até à idade adulta; por outro lado, o garante de diferentes competências que os(as) devem acompanhar ao longo das suas vidas, incluídas nas relações laborais que venham a estabelecer. Contudo, a escola não serve apenas como um input e output de cidadãos(ãs); são vários(as) os(as) que continuam (ou retomam) o seu percurso escolar prosseguindo a via da investigação científica. De entre estes(as), encontram-se os bolseiros de investigação que desenvolvem projectos que visam promover um melhor conhecimento ou dar resposta a diferentes problemáticas do quotidiano, estão envolvidos(as) em projectos nacionais e internacionais, organizam ou ajudam a organizar encontros científicos, fazem revisão de artigos científicos, leccionam ou apoiam docentes nas respectivas unidades curriculares, entre outras tarefas que desenvolvem simultaneamente à sua investigação. As actividades que acabo de mencionar acontecem frequentemente em regime de voluntariado.

Afirmo, e estou certo que ninguém conhecedor desta realidade discordará, que os bolseiros de investigação são, em grande medida, fundamentais para o funcionamento das dinâmicas universitárias e pelo avanço da ciência nas suas diferentes vertentes. A verdade é que estes(as) investigadores(as) não têm um contrato de trabalho com o Estado, não têm direito a subsídios de férias e de Natal, nem tão pouco, finda a bolsa, a subsídio de desemprego. As bolsas de investigação correspondem ao pagamento de um determinado valor mensal, devem ser renovadas anualmente (até um máximo de quatro anos de trabalho) e, findo o processo de doutoramento e a respectiva bolsa de investigação, muitos destes(as) investigadores(as) ficam desempregados(as). Há uma tripla falta de reconhecimento: em primeiro lugar do Estado, que não reconhece a relação laboral; em segundo lugar, das instituições universitárias, que muitas vezes reforçam a precariedade laboral e fomentam o voluntariado; e em terceiro lugar, das revistas científicas porque se apropriam da disseminação do trabalho científico sem contrapartidas económicas para os autores.

É certo que, o Ministério da Educação tem dado, desde 2016, sinais de querer contrariar o panorama dos bolseiros de investigação ao nível do pós-doutoramento, promovendo a carreira de investigação e os respectivos contratos de trabalho e os apoios sociais que daí advenham, combatendo deste modo a precariedade laboral e reconhecendo a importância do trabalho desenvolvido. É certo que nada tem avançado como expectável e muito há ainda para fazer. É o velho hábito de legislar sem antes se conhecer a realidade e confiar num esboço teórico sem preparar as condições para a aplicabilidade prática. Contudo, este debate não abrange todos os bolseiros, os(as) investigadores(as) com bolsas de doutoramento continuam ausentes de qualquer avanço na sua situação laboral. Os concursos para atribuição de bolsas de doutoramento continuam a acontecer em circunstâncias precárias.

É certo. Sim, é certo que o trabalho liberta e o dinheiro também. Mas não só: o reconhecimento das relações laborais é fundamental e não o é menos para os(as) investigadores(as) que prestam um serviço importante para o melhor conhecimento da realidade e apontam caminhos para a melhoria da vida colectiva, informando o Estado, as universidades e a ciência. E não é justo que no fim do trabalho desenvolvido vivam angustiados(as) por não terem qualquer apoio que permita, durante o período de desemprego, confiar num estado social para o qual deseja(ra)m contribuir.

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