A odisseia de chegar a Beja vindo de Lisboa

Na mesma semana em que as consultas de pediatria em Beja se atrasaram três horas, na Sertã uma idosa morreu porque não tinha telefone para pedir ajuda. É este o outro Portugal, longe do Terreiro do Paço e de São Bento

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Nuno Morão/Flickr

Escrevo estas palavras no seguimento de uma notícia publicada no passado dia 22 de Fevereiro pela Radio Pax (Beja), que dava conta de como as demoras no comboio com destino a Beja fizeram atrasar em três horas as consultas de pediatria no hospital dessa cidade. Mais, é referido que outros médicos também têm sido afectados pelos recorrentes atrasos na circulação ferroviária. A notícia é reveladora de vários problemas do interior do país.

Num nível superficial, há os atrasos e supressões na circulação de comboios, que se repetem há anos. Quem circula de automotora no ramal de Beja já sabe que não pode tomar a circulação de um transporte público como um dado adquirido. Que disparate, querer que um transporte público, cuja circulação é financiada pelos contribuintes, ande de estação em estação pontualmente. Isto, quando chega…

Mas andar de automotora no ramal de Beja é também experienciar o clima alentejano em pleno. Imagina que estás dentro de uma caixa de metal sem ar condicionado numa tarde de Agosto, por volta das 17h, quando esta fica parada na linha por avaria, sob o sol de Verão, 45º C no exterior. Ou ficas apeado na estação de Casa Branca, numa plataforma sob o luar de Janeiro, quando as temperaturas rondam os 0º C, sem saber se a automotora vem ou se terás que continuar o caminho de autocarro, que demora mais tempo e nem sempre tem lugar para todos… Agora pensa que os utilizadores desta automotora são maioritariamente idosos. É complicado.

“Porque não andam de autocarro?”, podem perguntar-me. Por um lado, porque os autocarros só partem de Beja e Évora. Quem viva nas outras localidades tem que se deslocar. Se não tiveres carro, precisas do comboio para chegar a Beja, mas se não há comboio… Partamos do princípio que chegas a Beja e consegues apanhar o autocarro para Lisboa. Tens pela frente mais de três de viagem. Comparativamente, de comboio, demorarias sensivelmente duas horas. O autocarro é uma alternativa penosa e deficiente, sem itinerários dentro do Alentejo.

De modo mais profundo, a notícia toca no modo como estes problemas de circulação perturbam a prestação de outros serviços essenciais, traduzindo-se no crescente isolamento do interior. Repara: alguns dos médicos não vivem em Beja. E isto repete-se, por exemplo, nos tribunais e nas escolas; áreas que, como a saúde, constituem pilares da sociedade. É difícil atrair pessoal qualificado para o interior. Sejamos honestos, como as coisas estão, que atractivos se oferecem? Como podemos discutir a descentralização e o (re)povoamento do interior do país se, logo para começar, os acessos são difíceis? Os comboios estão em extinção, as auto-estradas são caras e, em alternativa, temos uma malha de estradas nacionais e municipais num estado digno de um bombardeamento.

A solidão no Alentejo é um peso psicológico. As distâncias são longas, inultrapassáveis para uma população idosa. Quilómetros sem ver vivalma, apenas horizonte. Consequência dos sucessivos anos de seca, a paisagem é ressequida. O isolamento leva ao desespero. As elevadas taxas de suicídio e a dependência de tabaco, álcool e drogas não se registam por acaso. O Baixo Alentejo está isolado do resto do país; pior, está isolado dentro de si próprio. Não nasce gente e não vem gente. Os que ficam definham. São cidadãos menos interessantes? Não interessam aos decisores?

Na mesma semana em que as consultas de pediatria em Beja se atrasaram três horas, na Sertã uma idosa morreu porque não tinha telefone para pedir ajuda. É este o outro Portugal, longe do Terreiro do Paço e de São Bento.

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