Quando o cérebro se enamora

É o coração que todos sentimos a palpitar de amor. Mas poderá, por ventura, não ser o coração a voz de comando que nos convida a reservar aquele restaurante caro para assinalar este dia especial. Bem-vindos a uma breve viagem à neurobiologia do amor

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Kelly Sikkema/Unsplash

Ano após ano, Fevereiro continua a trazer um fervilhar de sentimentos e emoções. Seja por instinto ou por convenção, nem os mais distraídos ficam indiferentes àquele que é talvez um dos mais famosos hinos apologéticos ao amor. Século após século, estrofes e estrofes se têm escrito em prol do amor. Não há poeta que se preze que não tenha já cantado o amor e/ou os seus turbulentos caminhos. Contas feitas e mais que muitos pergaminhos gastos, que sabemos nós, afinal de contas, sobre o amor? Será realmente “fogo que arde sem se ver"?

Para aqueles que preferem que o amor continue a existir como um dos grandes mistérios da humanidade, talvez este seja o momento adequado para parar de ler este artigo… Esqueçam o que leram, parem na florista mais próxima, agarrem nas rosas sem demoras… e corram! Ele ou ela estarão à vossa espera (e melhor será que se aprontem sem demoras). Para os mais curiosos, preparem-se para o que está para vir. Esqueçam o coração. E acompanhem-me numa breve viagem à neurobiologia do amor.

Foi há cerca de duas décadas que a antropóloga e bióloga Helen Fischer decidiu estudar 166 sociedades e encontrou evidência de amor romântico em pelo menos 147 delas. Desde então, boas razões há para suspeitar que o amor romântico tem sido mantido ao longo da evolução por algo bastante básico para a nossa natureza biológica. Do ponto de vista da evolução e da perpetuação da espécie humana, fácil será conceber que o amor romântico possa constituir um mecanismo evolutivo que permite aumentar as hipóteses de reprodução e/ou sobrevivência da descendência através dos cuidados partilhados. Mas quais serão afinal de contas os mecanismos biológicos por detrás do revigoramento de tal comportamento animal e que permitem que ainda hoje este se manifeste de forma tão intensa no nosso dia-a-dia?

Recompensa: a essência neurobiológica do amor

Em 2005, Fisher liderou uma equipa de investigadores que publicou pela primeira vez um estudo inovador que incluía as primeiras imagens de ressonância magnética funcional — uma técnica não invasiva utilizada para estudar a actividade de diferentes áreas do cérebro humano — de cérebros de indivíduos que reportavam estar a experienciar uma relação de amor romântico em fase inicial. Esta equipa avaliou a actividade cerebral de estudantes universitários enquanto observavam fotografias da pessoa amada quando comparadas com fotografias de pessoas conhecidas com as quais mantinham laços de afinidade, mas não de amor romântico. Os resultados foram no mínimo surpreendentes: as fotos de pessoas que amavam romanticamente fizeram com que o cérebro dos participantes se tornasse activo em regiões ricas em dopamina, o chamado neurotransmissor da recompensa. Duas das regiões cerebrais que mostraram aumentos comparativos de actividade foram o núcleo caudado, uma região associada à detecção e expectativa de recompensas e à integração de experiências sensoriais no comportamento social, e a área tegmental ventral (uma das principais fontes produtoras de dopamina), tipicamente associada ao prazer, à atenção focalizada e à motivação para procurar e adquirir recompensas.

Este circuito é considerado uma rede neural primitiva (o que significa que é evolutivamente antigo) e representa um dos principais circuitos essenciais à sobrevivência. Do sexo/reprodução ao consumo alimentar, é nos circuitos da recompensa e na dopamina que reside a representação do que é desejável e a envigoração do comportamento (humano ou não-humano). O neurotransmissor dopamina activa o circuito de recompensa, ajudando a tornar o amor uma experiência prazerosa semelhante à euforia associada ao uso de cocaína ou álcool. A evidência científica de alguma similaridade pode ser encontrada em muitos estudos, incluindo um realizado na Universidade da Califórnia, São Francisco, e publicado em 2012 na prestigiada revista Science. De acordo com o mesmo estudo, moscas de frutas masculinas que foram rejeitadas sexualmente bebiam quatro vezes mais álcool do que as moscas da fruta que acasalavam com moscas da fruta feminina. Um mesmo objectivo, a recompensa, mas diferentes caminhos para chegar lá? Será o amor, na sua essência, uma adição? Um vício?

Outros neuroquímicos tipicamente implicados no amor romântico são, por exemplo, os neuropéptidos oxitocina e vasopressina, moléculas tipicamente conhecidas pelos seus papéis no parto, lactação ou regulação hidromineral. Estudos em roedores demonstraram que estas moléculas são imprescindíveis para a criação de vínculos entre parceiros adultos em espécies de roedores monogâmicas. Outros estudos implicam igualmente estas moléculas na afiliação materna e na criação do elo afectivo entre mãe e crias, sugerindo semelhanças entre o amor romântico e o amor maternal nas suas raízes biológicas. Curiosamente, outros estudos parecem implicar interacções entre os sistemas da oxitocina e da dopamina na codificação da recompensa social, por extensão também implicada na génese do amor romântico ou maternal. Será afinal de contas o amor verdadeiramente “uma dança a dois tempos”?

Será o amor realmente cego aos olhos do cérebro?

Além dos sentimentos positivos que o romance traz, o amor romântico parece também desactivar os circuitos neurais responsáveis pelo processamento de emoções negativas, como o medo e o julgamento social, envolvendo maioritariamente uma área cerebral designada por amígdala. Interessantemente, um decréscimo de actividade em áreas frontais do cérebro, tipicamente implicadas em processos de tomada de decisão ou avaliação de risco, parece estar tipicamente associado ao amor romântico. Já diz o povo que “quem feio ama, bonito lhe parece” e que as maiores loucuras se cometem por amor. Haverá afinal de contas uma explicação científica para tal sabedoria popular?

Um amor para a vida toda?

Muitas teorias do amor propõem que haja uma mudança inevitável ao longo do tempo do amor apaixonado para o que normalmente é chamado de amor compassivo — amor que é profundo, mas não tão eufórico como o experimentado nos primeiros estágios do romance. Isso não significa, no entanto, que a centelha do romance esteja extinta para casais de longo termo. Um estudo de 2011 realizado por uma equipa de investigação (que também incluía Fisher) na Universidade Stony Brook, no estado de Nova Iorque, avaliou as respostas cerebrais de casais em relações de longo termo (em média 21 anos) também quando observavam fotografias do parceiro comparadas com fotografias de alguém íntimo, mas sem relação romântica. A intensidade de recrutamento de áreas ricas em dopamina parece ser semelhante ao encontrado nos cérebros de casais em estágios iniciais de amor romântico. Os autores sugeriram que a excitação do romance pode de facto permanecer, mesmo após um período tão longo como 21 anos de relação.

Moral da historia: sim, é o coração que todos nós sentimos palpitar de amor! Mas poderá, por ventura, não ser o coração a voz de comando que nos convida a reservar aquele restaurante caro para assinalar este dia especial. Talvez precisemos de amor como de água para beber. Talvez haja, de facto, amores para a vida toda. E talvez Camões não estivesse assim tão errado. Amor é mesmo o “nunca contentar-se de contente”. E esta, hein?

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