Aqui não há gente pior nem melhor

Tanta Gente, Mariana e As Palavras Poupadas são os livros que inauguram a publicação da obra completa de Maria Judite de Carvalho. Contêm já os elementos que irão definir um trabalho tão elegante quanto desafiador.

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Ao longo de uma vida de 76 anos, Maria Judite de Carvalho preferiu manter-se na sombra e dar todo o protagonismo às suas personagens, criadas graças a um enorme poder de observação do quotidiano DR

Há episódios que ajudam a perceber o tempo em que determinada obra ou determinado autor aparecem e os estragos ou as ameaças ao estabelecido que representam. Este foi recordado por Baptista-Bastos no dia da morte de Urbano Tavares Rodrigues, em 2013, e testemunha o carácter disruptivo dos textos de Maria Judite de Carvalho numa altura em que tinha publicado pouco mais do que Tanta Gente, Mariana e As Palavras Contadas. Num texto para a revista Ler, em 2015, descrevo-o: “Conta-se que um dia o escritor Urbano Tavares Rodrigues ao descer o Chiado entrou na pastelaria Bénard e, lá dentro, deu um soco ao crítico Manuel Múrias depois de este ter escrito uma crítica feroz na qual sugeria que, em vez de escrever, Maria Judite de Carvalho deveria ficar em casa a fazer filhos.” 

Ao circunscrever a sua literatura a pouco mais do que o universo doméstico, a discreta Maria Judite de Carvalho fazia-o de forma revolucionária para a época. No texto que serve de prefácio ao volume com que a Minotauro agora inicia a reedição da sua obra, Urbano Tavares Rodrigues escreve com o entusiasmo que se lhe reconhece sempre que apresentava um novo autor: “Tanta Gente, Mariana foi uma espécie de bomba, sem excessos verbais, que caiu sobre o marasmo da sociedade portuguesa do final dos anos cinquenta, com uma ironia dolorosa, por vezes ácida, denunciando as frustrações e contidas mágoas da mulher portuguesa entregue aos caprichos masculinos e aos ‘brandos costumes’ da hipócrita moral salazarista.”

Ao contrário do que o perfil de Maria Judite de Carvalho poderia sugerir, não estamos diante de seres conformados. As suas mulheres não eram vazias. Pelo contrário, ganhavam autonomia e singularidade dentro do anonimato a que pareciam confinadas. Ela revelava-as, rebeldes, angustiadas, perversas, na multidão da cidade em que habitavam. Como Mariana, a protagonista do seu conto de estreia. “O especialista perguntou-me se tinha família. Respondi-lhe que não. Pareceu ligeiramente desapontado, como se a minha situação de pessoa só fosse afinal o pormenor mais grave de tudo o que ali se ia passar e dizer, a primeira pedra no caminho fácil do meu caso. Olhava para mim com as análises na mão. Mesmo ninguém?...”.

É só o começo de Tanta Gente, Mariana (1959), o conto mais conhecido desta escritora que começou a publicar aos 31 anos e que, apesar de todos os prémios que conquistou em quatro décadas de escrita, não saiu de um nicho de admiradores. É o retrato de uma jovem mulher solitária num casarão soturno da cidade de Lisboa que viaja através da memória depois de saber que está mortalmente doente. Os primeiros traços do retrato aproximam-se da biografia da própria Maria Judite, que cresceu órfã num ambiente muito semelhante, e que chegou a confessar que havia naquela história muitos elementos pessoais.

Foi das confissões mais íntimas que fez ao longo de uma vida de 76 anos em que preferiu manter-se na sombra e dar todo o protagonismo às suas personagens, criadas graças ao seu enorme poder de observação do quotidiano, um poder que só tinha porque escolheu, ela própria, ficar no papel de observadora. Sabia como ser Arminda a olhar pela janela todos os homens que via passar na rua e a confundi-los com um só homem, o da sua obsessão, como em A Menina Arminda, outro dos contos que compõem este primeiro volume da obras completas de Maria Judite de Carvalho. Ou como a Graça de As Palavras Poupadas (1961), o segundo livro deste primeiro volume, vencedor do Prémio Camilo Castelo Branco, há-de olhar para aquele homem “desbotado, obsequioso, mesureiro” que “abre a porta de vidro, imobiliza-a com o pé (é automática) – ‘Cuidado com o degrau, Madame’ –, curva-se um pouco para a deixar passar." Ela olha e vê: "Tem o grande embrulho redondo, toscamente feito com papel pardo, muito encostado ao peito, protegido pela mão peluda, de unhas largas, uma das quais, a do indicador, está queimada pelo cigarro.”

Olhares como estes são exemplo da ironia que existe por trás do semblante sereno, que aprendeu a dissimulação quando ela é precisa; que sabe de todos os pactos, os mais convenientes à sociedade; que se refugia no íntimo e lhe descobre o turbilhão. De quem escreve com a convicção de que não há gente pior nem gente melhor, e de que a moral não entra aqui a não ser como elemento literário. Sublinhe-se, mais uma vez, que estamos no início dos anos 1960 em Portugal e Maria Judite de Carvalho escrevia assim em As Palavras Poupadas. “A verdade é que nem todas as mulheres eram capazes de se sacrificar e resistir às tentações que a vida lhes semeava pelo caminho. E isso não queria dizer que fossem piores do que as outras.”

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