O 11.º Mandamento: tereis de achar piada em tudo

(ou como o 14.º Rei de Portugal determinou a comédia contemporânea)

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The Dictator

Incomodam-me os maus humores de Portugal. Piorou quando, depois de ter lido os comentários a uma crónica aqui no P3, constatei que mais do que o Humor é a razão que está sob ameaça. Porquê o insulto e o linchamento público?

Lembrou-me o Pogrom de Lisboa em 1506, quando um cristão novo, ao contrariar a populaça sobre uma suposta visão de Cristo, acaba queimado no Rossio. Começa a matança e as vítimas da tragédia são os cristãos novos e os judeus marranos que não tinham sido baptizados à força em 1497 (uma bela prenda de casamento de D. Manuel I a Isabel de Espanha). Os sobreviventes acossados fogem, na sua maioria, para a Holanda. Lembrou-me tudo uma anedota popular: "Um judeu volta-se para O Todo Poderoso: 'Senhor, não podias ter escolhido outro povo, para variar?'".

Sem querer descrever a diáspora, concentrei-me nas suas consequências, no porquê da importância da cultura judia e, principalmente, do seu humor. Já numa peça anterior tinha tocado na questão de Isaac (Itzhac em hebraico sendo que Itzhok significa "rir"), a piada generativa de Sara, mulher de Abraão. Há de facto um Humor judeu...mas porquê?

Howard Jacobson, Booker Prize 2010, revela que a sua escrita só começou a ser judia quando, ao perder o medo, se torna num "acrobata literário", começando a escrever "comédia séria". "Quando o humor passa para outras áreas, aí começam os problemas. As pessoas ficam confusas, não sabem o que pensar, ficam ofendidas”. Ora o humor, porque desregrado, ultrapassa barreiras e preconceitos. Representa uma ameaça porque é transgressor ou libertador.

O "cheiro a sangue" do Humor judeu

É nessa face "libertadora", na "separação entre a racionalidade e o absurdo", que assenta o Humor judeu. Para Jacobson, a sua particularidade é o "cheiro a sangue". É um antídoto para uma história terrível que, por tal, se tornou parte da génese de um povo —deveria haver um "11.º mandamento: Tereis de achar piada em tudo", reforça.

Associando a sátira, a humildade e o humanismo "conjura-se a adversidade". "Educar moralizando pelo Humor" parece definitivamente a razão do criar judio — e tão próximo está de "castigat ridendo mores" ("corrige os costumes sorrindo") de Jean de Santeul que, para muitos, como Molière e Gil Vicente, é o princípio fundamental da comédia.

Por cá, um exemplo. António José da Silva, O Judeu, comediógrafo do séc. XVIII, associado à criação da ópera em Portugal, e notável por ter ocupado, na dramaturgia portuguesa, o vazio entre Gil Vicente e Almeida Garrett, que acabou queimado pela Inquisição.

Em 1630, vindos da Holanda, uns quantos marranos chegam ao Brasil. Fixam-se em Nova Holanda, colónia holandesa no Nordeste, edificando no Recife a primeira sinagoga do novo mundo. Vem a reconquista pelos portugueses, novas "viagens" e 23 deles sobem, em 1654, para Nova Iorque, onde fundam a primeira sinagoga da América do Norte. Foram por muito tempo referidos como "a gente da Nação Portuguesa" e, em 1701, constroem o primeiro templo em Inglaterra, em Bevis Marks, Londres.

Vendo bem, nós não perdemos a humor... expulsámo-lo.

Não é então de estranhar que tão mal por cá andemos: maus humoristas, com falta de humildade e, acima de tudo, com pouca tolerância e nenhuma cultura. Porque quando fazemos rir também nos expomos e, se a genética quiserem culpar, serão talvez os mais preparados os que melhor o farão: Jerry Seinfeld, os Irmãos Marx, Jerry Lewis, Woody Allen ou Sacha Baron Cohen...

Apetece dizer: e tudo por causa de D. Manuel.

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