“Viver” (“Ikiru”), de Akira Kurosawa (1952)

“Viver” é um filme sobre a desumanização social, sobre o Japão ocidentalizado, americanizado, do pós-guerra

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Esta semana vamos muito longe. Vamos ao Japão de 1952, a preto e branco, para tentar perceber um pouco melhor o sentido da vida. Ao mesmo tempo, recebemos algumas lições sobre o que torna um filme grande. Mas preparemo-nos para, a princípio, tudo quanto virmos ser longínquo: o espaço, o tempo, o modo de vida, os hábitos, os códigos sociais, a língua. Mais: preparemo-nos para esta forma pausada de fazer cinema, para a rigidez da postura e das formalidades do protagonista e para a estranheza do ritmo arrastado do seu discurso, do tom monocórdico, hesitante, fragmentado, sempre adiado do conteúdo. É assim o Sr. Watanabe – um homem sempre adiado.

Chefe de secção de Assuntos Municipais, o Sr. Watanabe é exemplar na sua capacidade de se apresentar ao serviço sem uma única falta em 30 anos e encaixar-se à cabeceira da mesa da repartição, a carimbar papéis que vão juntar-se aos que, arranjados em lotes e etiquetados, transbordam das estantes e invadem o espaço de acção dos funcionários, numa aparente vitória. Tomando essa imparável circulação de papéis como um organismo mais vivo do que as pessoas que ali trabalham, facilmente entenderemos o sr. Watanabe como um morto-vivo. A história começa realmente quando o próprio sr. Watanabe toma consciência dessa condição, após um exame médico: a condenação a uns meses de vida mostra-lhe simultaneamente a vida no fim e a consciência de que ainda não tinha começado a vivê-la. Começa então uma febril procura por algo realmente significativo que possa ainda fazer.

“Viver” é um filme de Akira Kurosawa, que também escreveu o argumento, juntamente com Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni. É um filme sobre o Japão ocidentalizado, americanizado, do pós-guerra. É um filme sobre a desumanização social como consequência das apertadas teias de conveniências, subserviências e silêncios de uma prática burocrática e de uma prática democrática que reduzem os cidadãos comuns a mecanismos de relógio. É ainda hoje, 60 anos depois de ter sido realizado, uma oportuna ponderação sobre os limites do sistema democrático – que nos tem sido apresentado não como o melhor, mas apenas como o “menos mau” – na resolução dos grandes problemas sociais.

Chegamos lá pela dor de um indivíduo – o Sr. Watanabe, interpretado por Takashi Shimura – com o qual podemos identificar-nos na procura da finalidade, do propósito de uma vida (quantas vezes vivida em nome de um filho, de uma mulher, de um marido, de uma casa, de um modo de vida, daquilo que os outros todos fazem), na procura daquela coisa que normalmente não sabemos qual é, mas que poderia deixar memória de que por cá passámos acrescentando algo ao que cá estava, algo importante, real ou simbólico, que nos definisse. Algo assim como aliviar a dor aos que sofrem, por não haver uma prática política capaz de dar aos que não se podem valer um dia-a-dia decente.

“Viver” pode ser um meio para nos aproximarmos dos outros, para aprender a partilhar as suas dores, quando a norma é ignorá-las, para descobrir que há formas de minorar a solidão, tais como o chapéu novo e “chocante” do Sr. Watanabe, a alegria que certas pessoas têm o condão de irradiar, contagiando-nos com vida, como a subordinada do Sr. Watanabe que deixou a secção por se sentir a morrer lá. No paroxismo da sua dor, o Sr. Watanabe canta duas vezes uma canção. Chama-se “Gondola no Uta”, e podem apreciá-la plenamente na interpretação de Yumiko Samejima, aqui. A letra, em japonês e inglês, está reproduzida aqui.

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