“Enquanto grávida eu era um ser acéfalo, não podia ter opinião”

Laura Ramos lançou uma petição pelo fim da violência obstétrica pouco depois de ter formalmente apresentado uma reclamação no hospital onde teve o terceiro filho. “Não consegui evitar que tudo me fosse recusado”, recorda. A recolha de assinaturas termina neste sábado a propósito da conferência “Nascer em Amor”, que acontece em Lisboa.

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Laura tem 43 e três filhos. Sente que nunca teve controlo sobre a intervenção que era feita no seu corpo durante o parto Nuno Ferreira Santos

Laura achou que se os primeiros dois partos não correram como queria, o mesmo não podia acontecer no terceiro. Preparou tudo para ter o filho em casa. Queria uma boa experiência. “Tinha lido muito, sabia tudo o que queria e o que não queria." Mas às 36 semanas, prematuramente, entrou em trabalho de parto. Foi para um hospital público na região de Lisboa e não evitou "uma experiência traumática”. “Para a equipa de saúde, eu enquanto grávida era um ser acéfalo, não podia ter opinião”, conta.

Laura Ramos é jornalista, tem 43 anos. Considera que foi vítima de violência obstétrica física e psicológica. Durante os três partos, em particular no último, sentiu-se humilhada e desrespeitada, constantemente pressionada pelo ritmo que a equipa de saúde lhe impunha. Sente que nunca controlou a intervenção que era feita no seu corpo.

Acabou por escrever uma reclamação formal ao hospital em Junho, que tornou pública. Lançou uma petição pelo fim da violência obstétrica pouco depois. Em três dias, recolheu as quatro mil assinaturas necessárias para ser debatida na Assembleia da República. Nesta quarta-feira, deu entrada no Parlamento com 5626 assinaturas válidas.

A possibilidade de a assinar termina neste sábado, dia da conferência “Nascer em Amor”, sobre o tema “menos interferência, mais cuidados”, organizada pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa.

“O meu objectivo foi confirmar que isto é um problema que acontece diariamente em todos os hospitais do país”, afirma Laura. Um problema que não é apenas português e resulta da evolução da medicina, entende Mário Santos, investigador dedicado à sociologia da saúde. “Portugal emergiu de uma situação bastante drástica nos indicadores de saúde materna e neonatal e teve um grande avanço nos últimos 50 anos, apoiando-se num consenso generalizado de que era necessária mais segurança no parto. Contudo chegamos a um ponto em que, para além de se salvaguardar os casos de risco, se normalizou a intervenção. Mas o parto como evento fisiológico que é, na maior parte dos casos, apenas precisa de vigilância”, suporta.

Esta visão tem colhido cada vez mais apoio na comunidade médica. Recentemente a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou directrizes que preconizam a ideia de que as equipas não devem interferir num parto sem complicações de forma a acelerá-lo.

Para Mário Santos, que tem estudado as questões da violência obstétrica no âmbito do seu doutoramento em sociologia no ISCTE, esta não se esgota na violência física ou no contrariar da vontade da mulher – “situações que também existem, mas são muito raras”. Esta forma de violência, que enquadra ao lado de outras formas de violência contra as mulheres, “tem a ver com esta cultura de o corpo da mulher ser incapaz de parir sem ajuda”. Leva a uma perda do protagonismo da mulher, fazendo com que, a tomada de decisão, em alguns casos, passe por completo para o clínico, afirma.

Consentimento informado

Esta evolução da cultura médica originou também “uma desresponsabilização das famílias quanto ao parto”, entende o investigador. Para o corrigir não se trata de imputar as responsabilidades às mulheres – ou limitar a sua escolha de ter um parto intervencionado –, mas de garantir que existe um consentimento informado e, quando possível, permitir-lhes escolher, afirma.

Isabel Valente, vice-presidente da APDMGP, considera que a “assistência está muito marcada pelo medo e pelo risco”. E que reproduz uma série de mitos. Isabel acredita que o número de cesarianas se manterão acima do necessário “enquanto não forem criadas as condições para a promoção do parto fisiológico – tranquilidade, privacidade, baixa luminosidade, silêncio, respeito”. Não raras vezes chegam à associação mulheres às quais foi administrada oxitocina – hormona produzida pelo organismo que, em doses extra, acelera as contracções – sem que as próprias dessem o seu consentimento ou soubessem o que aquilo era.

Laura já passara por isso e achava-se “protegida” ao terceiro parto. Já pertencia à APDMGP, entrevistara vários obstetras. “Não consegui evitar que tudo me fosse recusado”, afirma. Retrata um dos momentos. Durante o trabalho de parto, colocou-se na posição em que se sentia mais confortável, de gatas, encostada a um móvel. Depois de a bolsa amniótica ter rompido e as contracções acelerado, terá entrado no quarto uma enfermeira que grita para o corredor: “Venham cá que esta vai parir no chão." Insistiu para que subisse para a cama, tendo, perante a recusa de Laura, agarrado no braço e gritado: “A doutora não vai fazer o seu parto no chão, está-me a ouvir?”.

O momento de expulsão foi uma discussão contínua, com Laura a pedir calma, menos pessoas a assistir (contou seis "estranhos" de braços cruzados a olhá-la) e a recusar o uso de fórceps.

Falta de profissionais

Ainda que a evidência científica tenha vindo a pôr cobro a estas questões, Mário Santos afirma que o ensino da prática em saúde continua a perpetuar formas de violência obstétrica. Acredita que uma mudança deve passar pelos estágios de enfermagem e internatos médicos, pelo activismo e pelo reforço de estudos que permitam saber o que as mulheres precisam. Para que se entranhe a ideia de que “sobreviver ao parto é um importante objectivo, mas não deve ser o único”.

Também João Bernardes, especialista em ginecologia e obstetrícia e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, considera que é preciso “mais tempo, mais espaço e maior conforto no parto”, em linha com a proposta de lei do PS para reforçar a humanização do parto. Reconhece que “haverá casos de má comunicação ou de expectativas que não correspondem à experiência humana” devido à falta de meios humanos nas maternidades. “Uma pessoa que tenha a seu cargo 10 ou 12 pessoas não tem capacidade de falar bem com toda a gente. Às vezes, é impossível”, afirma.

O também presidente do colégio da especialidade de ginecologia/obstetrícia da Ordem dos Médicos ressalva que o percurso histórico do país, que passou de “um parto sem assistência há 30 anos, para um parto muito assistido, porventura com técnica a mais”, permitiu que Portugal continue a reduzir as taxas de mortalidade e morbilidade infantil e materna, que já são das mais baixas do mundo.

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