À procura da paternidade perdida

Caberá, agora, ao Tribunal Constitucional decidir de que lado está a nossa Constituição.

Suponha que é filho de pai incógnito. Suponha que tem 38 anos de idade e que, apesar de já há muito desconfiar de quem é o seu pai, só agora se decide a querer ver reconhecida a sua filiação e apresenta em tribunal uma acção de investigação de paternidade. Pode fazê-lo?

A lei diz que não mas o Supremo Tribunal de Justiça, no passado dia 15 de Fevereiro, disse que sim. E parece-me que com razão.

Caberá, agora, ao Tribunal Constitucional decidir de que lado está a nossa Constituição: se do lado da lei que determina que, passados dez anos após se atingir a maioridade, se extingue o direito de investigar a paternidade, ou se do lado do STJ que, nesta simpática decisão dos juízes conselheiros Graça Amaral, Henrique Araújo e Maria Olinda Garcia, considerou a referida lei inconstitucional e se recusou a aplicá-la.

Para o STJ, a lei, ao estabelecer limites temporais ao exercício do direito de investigar/conhecer a paternidade, viola os nossos constitucionais direitos à identidade pessoal e à integridade pessoal. Direitos que têm de ser conjugados com o direito ao desenvolvimento da personalidade e o direito ao conhecimento das próprias raízes e o direito à historicidade pessoal, isto é, quais são os nossos antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas, culturais e genéticas de cada indivíduo.

As justificações que são apresentadas para a lei estabelecer este limite de dez anos ao direito de investigar/conhecer a paternidade são essencialmente razões de segurança pessoal, familiar e económica do investigado, isto é, daquele que, com a acção judicial, se pretende que seja reconhecido como pai. Subjacente a este prazo está, assim, a vontade da lei de garantir segurança para sujeitos ou pessoas concretas – designadamente, o interesse do pretenso pai em não ver manter-se indefinidamente o risco de poder ser chamado a assumir a paternidade, bem como o interesse, sendo o caso, de não ser posto em causa o remanso da família constituída pelo pretenso pai, com a possibilidade de aparecerem a qualquer momento novos filhos e, ainda, o argumento de que as acções de investigação visam frequentemente tão-somente fins patrimoniais, isto é, aqueles que querem ver estabelecida a sua filiação fazem-no em relação a pretensos pais ricos ou que deixaram, pela sua morte, muito património aos herdeiros e não, em geral, a pais pobres ainda que do mais elevado gabarito humano e moral.

A lei faz uma ponderação entre os interesses e direitos do filho a saber quem é o pai e os interesses do pretenso pai e da sua família em não serem incomodados – emocional e patrimonialmente – e considera equilibrado que, durante dez anos, o filho adulto possa incomodar e findos esses dez anos deixe de poder incomodar. O STJ, pelo seu lado, considerou que os interesses e direitos do filho são de valor de tal modo superior aos interesses e direitos do pretenso pai e da sua família legal que estes não podem estabelecer limites temporais ao exercício daqueles. Para o STJ, qualquer cidadão português que não tenha legalmente estabelecida a sua paternidade pode sempre procurar estabelecê-la.

Para o Tribunal Constitucional (TC) a tarefa não vai ser fácil: na verdade, este tribunal já se pronunciou mais do que uma vez sobre este assunto e já disse que considera razoável constitucionalmente o limite dos dez anos e alterar a sua jurisprudência não é evidente, antes sendo habitual a sua confirmação. E, no entanto, os tempos e os costumes vão evoluindo.

Acresce que o TC, numa recente decisão, considerou inconstitucionais algumas disposições da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), entre elas a que assegurava o anonimato do doador de material genético com vista a possibilitar a fecundação da mulher. Considerou o TC tal disposição inconstitucional por violar dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade dos cidadãos nascidos através da PMA, por configurar uma restrição desnecessária desses direitos, menosprezando, assim, os direito e interesses dos doadores.

E agora? Será que o TC vai considerar a protecção legal do anonimato do progenitor, decorridos dez anos desde a maioridade do filho, como necessária e constitucional? Espera-se – STJ incluído – que não!

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