“Os líderes mundiais não deviam ir à cerimónia de abertura do Mundial”

Emma Daly, directora de comunicação da Human Rights Watch, fala das violações dos direitos humanos na Rússia a um mês do início do Mundial.

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O Mundial na Rússia está a ser encarado com apreensão pela Human Rights Watch SERGEY PIVOVAROV/Reuters

Falta um mês para Rússia e Arábia Saudita darem, em Moscovo, o pontapé de saída do próximo Mundial e, se parece tudo a postos para receber o torneio durante um mês, há muitos problemas para resolver e que vão para lá do futebol. É esta a convicção de Emma Daly, directora de comunicação da Human Rights Watch, uma ONG que monitoriza violações de direitos humanos e que elaborou um guia para alertar os jornalistas da imprensa internacional para os abusos que se cometem no país de Vladimir Putin, entre violações da liberdade de imprensa, liberdade de expressão, falta de condições de trabalho para quem esteve na construção de estádios e infra-estruturas, e discriminação da comunidade LGBT. Em entrevista ao PÚBLICO, a antiga jornalista britânica diz que a FIFA não pode ter medo de usar a sua influência e deixa um pedido aos líderes mundiais para não irem à cerimónia de abertura enquanto não houver garantias de que as coisas vão mudar.

A Human Rights Watch já chamou a este Mundial da Rússia o “Mundial da Vergonha”. Porquê?
O Mundial vai decorrer na Rússia numa altura em que se vive a pior situação em termos de direitos humanos desde a era soviética. Vemos ataques aos media independentes, à oposição política e a grupos da sociedade civil, defensores dos direitos humanos. O espaço é cada vez menor para alguém criticar o Governo. A FIFA adoptou uma política de direitos humanos para, de alguma forma, se distanciar dos escândalos de corrupção do passado. Usa umas palavras bonitas sobre a protecção dos direitos humanos e gostávamos de ver a FIFA usar a sua influência sobre a Rússia para tentar melhorar a situação, sobretudo no que diz respeito ao Mundial.

A Rússia tem recebido muitos megaeventos desportivos, mesmo estando sempre no fundo de todas as listas de respeito pelos direitos humanos, liberdade de imprensa…
É algo muito problemático e foi uma das razões pelas quais começámos a prestar mais atenção à relação entre a organização de megaeventos e os direitos humanos. Os governos vão à procura destes eventos para fazer uma espécie de lavagem desportiva da sua reputação. São grandes eventos que recebem milhões de pessoas, gasta-se muito dinheiro em infra-estruturas e em estádios novos, é um grande espectáculo e toda a gente se diverte, e isso desvia a atenção do que acontece a muita gente no próprio país. É o segundo grande evento da Rússia nos últimos anos [depois dos Jogos de Inverno de Sochi em 2014]. Vimos abusos semelhantes em Sochi. Nesse caso, o Comité Olímpico Internacional conseguiu exercer pressão e fez justiça para muitos dos trabalhadores que foram explorados a construir os Jogos de Sochi. Gostávamos que a FIFA fizesse o mesmo.

Essa pressão do COI deu resultados?
Disseram-nos que sim. Em teoria, oito milhões de dólares em salários que não foram pagos foram libertados.

E esperam que a FIFA faça o mesmo…
Há vários assuntos. A FIFA está mais envolvida com as questões directamente relacionadas com os jogos, como as questões laborais. Pelo menos 21 trabalhadores morreram na construção dos estádios, já ouvimos muitas histórias de trabalhadores, sobretudo de imigrantes, que não têm contrato e que recebem muito menos do que lhes foi prometido, que não recebem durante meses, que são presos quando tentam reclamar. Isto não é atípico em relação à construção na Rússia — já estamos a seguir estes abusos na Rússia desde 2009. A FIFA tem, pelo menos, a responsabilidade de garantir que os trabalhadores que estão na construção dos estádios e das infra-estruturas são pagos justamente e têm boas condições de trabalho. E que tenham liberdade para protestar e, se entenderem, formarem sindicatos. O mesmo também é verdade para outras liberdades. As pessoas deviam ter liberdade para fazer manifestações e isto não vai acontecer na Rússia. Não autorizaram grandes manifestações durante a Taça das Confederações e as pessoas que tentaram foram presas. A polícia tem a responsabilidade de garantir que as pessoas estão em segurança nos jogos, mas também devia garantir que as pessoas se possam manifestar de forma pacífica. Infelizmente, nada disto é novo na Rússia.

Está será mais uma forma de Vladimir Putin legitimar o seu regime aos olhos do mundo…
É o que eles desejam e é importante que os líderes mundiais não lhe dêem essa satisfação. Não no estado em que o mundo está. Há muitas violações dos direitos humanos na Rússia, mas também temos de olhar para o envolvimento russo na Síria e o apoio que dá ao Governo sírio e o apoio diplomático nas Nações Unidas. O que dizemos é que os líderes mundiais não deviam ir à cerimónia de abertura até a Rússia dar passos significativos para mudar a situação. Não achamos que seja correcto que os líderes mundiais se juntem à festa na cerimónia de abertura.

Os líderes islandeses já disseram que não vão ao Mundial…
Há várias campanhas nesse sentido. Não sabemos se o Governo britânico irá estar na Rússia, ou não, mas já foi sugerido que não iriam por causa do caso Skripal. Não achamos que as pessoas devam boicotar o Mundial. Não queremos é que o Mundial fique manchado pelas violações dos direitos humanos. E é importante que os adeptos e os jornalistas saibam o que se passa. Vamos ter jogos em 11 cidades, mas a pegada da FIFA vai para lá disso. A Tchetchénia é uma das repúblicas mais repressivas, quase totalitária, e vai receber, em Grozny, a selecção do Egipto. É totalmente inapropriado que a FIFA tenha a base de uma selecção num sítio como a Tchetchénia, extremamente repressiva. Recentemente, o líder de uma organização que luta pelos direitos humanos foi detido por acusações de droga que acreditamos serem falsas e com motivações políticas. Acreditamos que é uma forma de Ramzan Kadyrov [presidente tchetcheno] acabar com uma organização que tem denunciado abusos tremendos. A FIFA devia pressionar Putin para que ele seja libertado antes de começar o Mundial. A Tchetchénia também ficou conhecida pela perseguição a homossexuais, histórias brutais de prisões, tortura e algumas mortes. A FIFA tem uma política de não discriminação e parece-nos perverso que seja a base de uma selecção. Também existe um problema com a infame lei da propaganda gay, que é uma lei muito abrangente que tem como alvo as pessoas LGBT, supostamente com o objectivo de proteger as crianças. Mas é um disparate. Tem claramente o objectivo de discriminar as pessoas LGBT. Esta é outra área em que a FIFA devia intervir, para garantir que este não será um Mundial homofóbico.

Mas temos sempre a sensação de que a FIFA tem tendência para olhar para o lado em algumas destas questões. É uma avaliação justa?
Tem um caminho longo pela frente. Introduziu uma política de respeito pelos direitos humanos e isso é positivo. Mas tem de ser real. É bom que façam inspecções à construção, mas são inspecções com hora marcada. Deviam ser feitas de surpresa. No fundo, a FIFA tem muita influência. Os países querem organizar o Mundial porque o mundo vai estar a olhar para eles. A FIFA devia garantir que todos os países que querem receber o Mundial respeitam os direitos humanos. Num mundo perfeito, o Mundial devia deixar o país melhor para as pessoas que lá vivem, não apenas para quem vai lá de visita. A FIFA não pode fazer tudo, mas diz que quer ser um agente da mudança e, para isso, tem de dar passos concretos.

É provável que muitas das vossas preocupações com o Mundial da Rússia sejam as mesmas com o Mundial do Qatar em 2022.
Muitas mesmo. No Qatar, os trabalhadores têm de lidar com calor extremo. Já se registaram muitas mortes entre os trabalhadores que estão no Qatar. O Governo diz que está a tomar medidas. Temos divulgado vários casos nos últimos anos e, recentemente, têm saído muitos casos na imprensa sobre isto. O Qatar diz que está a fazer reformas no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores, mas o que realmente conta são os efeitos reais. Se o visto de trabalho está nas mãos dos empregadores, os trabalhadores ficam numa posição muito vulnerável e precisam de mais protecção para poder exigir os seus direitos. É difícil fazer greve quando isso pode significar a expulsão do país.

Uma das medidas da FIFA é ter atenção ao cumprimento dos direitos humanos no processo de atribuição dos Mundiais. Se fosse hoje, a Rússia ou o Qatar receberiam o Mundial?
Talvez não. Mas vai ser interessante ver quem vai organizar o Mundial de 2026. Temos a candidatura conjunta do Canadá, México e EUA, e Marrocos. Temos denunciado muitas violações dos direitos humanos nos EUA, no Canadá e no México, mas, entre as duas, Marrocos é o país que castiga de forma significativa comportamentos LGBT. Nenhum Governo é perfeito, todos violam os direitos humanos, mas, se a política de direitos humanos da FIFA for a sério, nunca poderão dar o Mundial a Marrocos.

As violações dos direitos humanos vão aumentar durante o Mundial?
É sempre uma preocupação. Fizemos um guia igual a este para os Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 e havia uma grande esperança de que os Jogos iam fazer com que a China fosse mais aberta e livre. Depois, houve ainda mais limitações à imprensa independente e ao direito de liberdade de reunião, de liberdade de expressão. Desde então, houve um declínio. Gostaríamos de dizer que o Mundial vai abrir a Rússia ao mundo, que a Rússia iria aproveitar a oportunidade para se abrir. A Rússia é um grande país e devia ter a confiança para garantir todos estes direitos aos seus cidadãos, mas as provas não vão nesse sentido. O que temos visto é que as violações dos direitos humanos têm aumentado nos últimos seis anos. Que este Mundial seja uma oportunidade para ver os problemas de muita gente e não apenas futebol.

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