Quanto pesa a Igreja num país muito católico mas pouco praticante?

A luta contra a eutanásia chegou aos altares e está nos 1,5 milhões de panfletos que a Igreja Católica pôs a circular no país. É “um acréscimo pedagógico” para uma discussão que está a pouco mais de duas semanas de chegar ao Parlamento.

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Miguel Manso

Até onde poderá chegar a influência da Igreja Católica na luta contra a eutanásia? A cerca de duas semanas de os deputados votarem no Parlamento quatro diferentes projectos de lei que propõem a despenalização da morte medicamente assistida, a Igreja desdobra-se em iniciativas para disseminar o seu “não”. Além da distribuição de milhão e meio de panfletos na passada semana, a Semana da Vida que arranca este domingo sob a batuta da Comissão Episcopal do Laicado e da Família inclui no seu programa a resposta à pergunta “Eutanásia… o que está em jogo?”. E, na quarta-feira, o Grupo Inter-Religioso de Trabalho para as questões da Saúde deverá emitir uma posição conjunta de diferentes comunidades religiosas contra a eutanásia.

Somando tudo isto às posições frontalmente contra do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, a questão está em saber a que ponto, num país maioritariamente católico como é Portugal, conseguirá a Igreja influenciar o desfecho da votação na generalidade marcada para o dia 29? E a que ponto pesará esta campanha no passo que se seguirá, isto é, na ponderação que há-de ser feita por Marcelo Rebelo de Sousa que, como lembra o politólogo António Costa Pinto, “é católico e tende a perceber-se como tal”?

Quanto à classe política, e assumida a liberdade de voto nas bancadas maioritárias no Parlamento, o politólogo considera que a Igreja Católica “não terá peso suficiente para impor o ‘não’ no Parlamento”. “Toda a legislação à volta de temas ético-morais, dos casamentos gay ao alargamento da procriação medicamente assistida às mulheres sós, tem sido aprovada por iniciativa do Parlamento, muitas vezes à revelia dos valores maioritários da sociedade portuguesa”, refere António Costa Pinto.

O propósito de eliminar as punições à eutanásia esbarrará então muito provavelmente no veto presidencial: “A presidência é um órgão político unipessoal e o presidente decide de acordo com a legalidade mas também com a sua consciência. E os vetos mais recentes, como o da lei de identidade de género, remetem para os valores católicos.”

Lembrando que Marcelo anunciou que não vetaria a lei motivado por razões pessoais, o sociólogo João Teixeira Lopes descortinou aqui “sinais contraditórios”. “O que esteve em causa no veto à lei da identidade de género foi a sua posição pessoal, embora escudada em argumentos jurídicos”, exemplificou. Ainda assim, o também membro do Bloco de Esquerda crê que Marcelo manterá a porta aberta a qualquer uma das decisões possíveis “porque ele também já percebeu como as mentalidades mudaram na sociedade portuguesa”.

Contra o “adormecimento generalizado”

Longe de poder ser mensurável a régua e esquadro, o peso da Igreja na sociedade tem também recuado, na opinião dos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. “Embora se reconheça católica, a sociedade portuguesa tem adoptado atitudes bem mais secularizadas do que as da hierarquia da Igreja”, aduz António Costa Pinto, para concluir que a diminuição do peso da Igreja Católica se viu, aliás, no “sim” no referendo à interrupção voluntária da gravidez.

O sociólogo João Teixeira Lopes, acrescenta a propósito que a prática religiosa em Portugal, onde os católicos declarados perfazem 79,5% da população, segundo o último estudo, é bastante diminuta. “A prática dominical não chega a mais de um quarto dos portugueses e isso vê-se também no facto de sermos dos países com mais nascimentos fora do casamento [54,9%, em 2017] e com maior número de divórcios”, elenca.

Assim, numa sociedade católica “mas cuja vivência é cada vez mais plástica e se faz cada vez mais sem mediação, isto é, sem interferência da hierarquia da Igreja”, naquilo que muitos chamam já a “protestantização” da Igreja Católica, o sociólogo não acredita que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) fuja do tom “comedido” e se agigante para além de “algum trabalho discreto de bastidores” contra a eutanásia, sem nunca apelar a “concentrações públicas ou embates muito directos”.

O esforço da Igreja para espalhar a palavra é notório. A inclusão da eutanásia no programa da Semana da Vida, que decorre até 20 de Maio com iniciativas diversas na generalidade das dioceses e paróquias do país, insere-se nessa tentativa “de acordar as pessoas”, como sintetizou ao PÚBLICO José Ribeiro da Cruz, secretário da Comissão Episcopal do Laicado e Família. “A ideia é acabar com um certo adormecimento generalizado, contribuindo que para haja uma opinião fundamentada e esclarecida sobre a eutanásia, dentro do que é a doutrina da Igreja que aponta para a inviolabilidade da vida”, acrescentou, para precisar que tal esforço se corporizou na distribuição pelas paróquias de 77 mil pagelas, 32 mil desdobráveis, três mil cartazes A3 e oito mil exemplares da pastoral católica sobre a eutanásia.

Na passada semana, e ao mesmo tempo que tem divulgado a manifestação que o movimento Stop Eutanásia convocou para o dia 24 de Maio, em S. Bento, a Igreja espalhou 1,5 milhões de folhetos contra a eutanásia nos quais resume em oito pontos a sua oposição ao auxílio médico na morte dos doentes terminais, no que pretende ser, segundo declarou o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa à agência Ecclesia, um “acréscimo pedagógico” para a discussão em curso.

No documento destrinçam-se termos como eutanásia, morte assistida, distanásia, obstinação terapêutica e cuidados paliativos, associados à ideia de que a sua despenalização vai destruir a relação médico-doente e abrir a porta ao famigerado efeito da “rampa deslizante” que a Igreja alega ser visível em vários países onde a prática da eutanásia se estendeu a "crianças recém-nascidas com deficiências graves" e a adultos incapazes de exprimir a sua vontade consciente. Outra das estratégias da Igreja passa por situar a questão no plano legal, nomeadamente quando sustenta, como sustentou o porta-voz da CEP, que a eutanásia atenta contra a Constituição, cujo artigo 24.º dita que a vida humana é inviolável.

Protestantes e Bahá’í de fora

Noutra frente, no dia 16, o Grupo Inter-Religioso de Trabalho para as questões da Saúde (GTIR/Saúde) promove uma conferência, de onde se espera uma declaração contra a morte assistida subscrita pelas várias comunidades religiosas ali representadas, da islâmica à budista, passando pelos judeus, ortodoxos, pela comunidade Bahá’í e pela Aliança Evangélica e Conselho Português de Igrejas Cristãs, entre outros.

A maioria posiciona-se claramente no sentido da defesa da vida enquanto valor inviolável. O presidente da Aliança Evangélica Portuguesa, António Calaim, lembra que “a palavra de Deus é muito clara quando diz ‘Não matarás’”. A União Budista Portuguesa também rejeita a opção de assistência na morte a doentes terminais, porque, como adiantou ao PÚBLICO Catarina Rodrigues, “na tradição budista a vida humana é o bem mais precioso".

Mas há excepções: a representante da comunidade Bahá’í para os assuntos externos, Ivone Félix, afirmou categórica ao PÚBLICO. “Não vamos subscrever esta posição conjunta”, garantiu. Apesar de mais cauteloso, Paulo Medeiros da Silva, presidente do Conselho Português de Igrejas Cristãs (Copic), que agrega metodistas, presbiterianos e lusitanos, também não esconde as reservas. “Preferíamos que as coisas não fossem colocadas de modo tão peremptório. Que a Igreja Católica assumisse uma posição menos dogmática e mais humilde, que fosse capaz de uma maior abertura”, explica. Apesar de as igrejas representadas pelo Copic, todas representantes do protestantismo de raíz europeia, não terem uma posição oficial, Paulo Medeiros diz que não se sente “confortável” com o documento prévio de trabalho. E que, se este mantiver uma rejeição categórica da eutanásia, sem atender à complexidade do assunto, não o assinará. “A Igreja Católica habitualmente assume as suas posições de cima para baixo - nunca fez um Censo junto dos seus fiéis para saber o que eles pensam - e tendemos a duvidar que, num país laico, a igreja, seja ela qual for, tenha legitimidade para exercer este tipo de pressão”, conclui.

Mais optimista, o padre Fernando Sampaio, coordenador nacional das capelanias hospitalares, mostra-se convencido que será possível congregar apoios e alcançar uma posição comum “no sentido de valorização da vida”.

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