Paixão e morte de Aldo Moro

O mais eminente político italiano foi assassinado pelas Brigadas Vermelhas a 9 de Maio de 1978, após 55 dias de cativeiro. Suscitou mais teorias conspirativas do que Kennedy. Foi uma tragédia grega na Guerra Fria. Com ele morreu a I República italiana.

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O cadáver de Moro foi encontrado na Via Caitani, entre as sedes da Democracia Cristã e do Partido Comunista GettyImages

Via Fani, Roma, 16 de Março de 1978, 9h. Um comando das Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse, BR) rapta Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã. Dois carros bloqueiam os dois automóveis da comitiva, o da frente com Moro, motorista e um carabineiro, o segundo com três polícias. Um dilúvio de fogo, cerca de cem tiros disparados, de pistola metralhadora e pistola. Os cinco homens da escolta são abatidos. Moro, incólume, é metido noutro carro e o comando terrorista desaparece. A operação durou três minutos.

As BR reivindicam o atentado por telefone. No seu “comunicado n.º1”, definem Moro como “o mais fiel executor das directivas emanadas das centrais imperialistas”. Anunciam o seu “julgamento”. Segue-se o “calvário”, a expressão é de Moro, de 55 dias numa “prisão do povo”.

Via Caetani, Roma, 9 de Maio, 13h30. Alertada por um telefonema, a polícia encontra o cadáver de Moro na bagageira de um Renault 4 encarnado. A Via Caetani fica, simbolicamente, a dois passos das sedes da Democracia Cristão (DC) e do Partido Comunista (PCI). Foi abatido por três séries de disparos, com duas armas, uma pistola Walther e uma pistola metralhadora Skorpion, num total de 12 tiros. É a versão dos carabineiros no inquérito parlamentar de 2017. Segundo a autópsia de 1978, Moro não terá morrido imediatamente, agonizando na bagageira.

O caso Moro é uma encruzilhada da História italiana e tem dois tempos. O primeiro é o sequestro. O segundo são os 55 dias de cativeiro, que dilacerou o Estado e a sociedade. Negociar ou não com as BR — “salvar Moro ou salvar a democracia?”. Prevalecerá a “linha da firmeza”, encabeçada pela DC e pelo PCI e pressionada por Washington.

Por trás deste diferendo está a questão do “compromisso histórico” entre as duas grandes forças políticas italianas, formulado pelo líder eurocomunista Enrico Berlinguer em 1973. Também Moro defendia a entrada do PCI na área do poder. A oposição a este projecto, por razões diferentes, unia os Estados Unidos e a União Soviética. No dia do rapto, Moro dirigia-se ao Parlamento para a votação de um novo governo DC, presidido por Giulio Andreotti: desta vez com os votos favoráveis dos eurocomunistas do PCI, facto inédito na política italiana.

No dia 16 de Março ninguém imaginaria que a I República estava condenada. “Com Moro, morre a I República. O seu fim assinala a regressão de uma classe política que se torna ‘casta’ num processo que culmina na Tangentopoli [corrupção política] e desemboca na apoteose berlusconiana”, sentencia o jornalista Giuseppe Giacovazzo.

Mistérios e fantasmas

Com Moro desaparecido, as polícias não tinham uma versão directa do atentado. A inesperada capacidade militar demonstrada pelas BR suscitava dúvidas. Muitas coisas não batiam certo. A narrativa dos brigadistas, nos tribunais, em entrevistas e memórias impôs durante décadas a sua versão. Seria longo enumerar os mistérios e os inúmeros fantasmas. Eis apenas alguns.

O comando era chefiado por Mario Moretti, então líder das BR. Começou por dizer que estavam nove pessoas na emboscada, das quais cinco abriram fogo. Depois, dez ou 12. Dos disparos, 49 foram feitos por uma única arma, uma pistola metralhadora, o que contradiz Moretti, Prospero Gallinari, Valerio Morucci e outros. E quem executou Moro? Primeiro, foi acusado Gallinari, mas Moretti assumiu a autoria. Mais tarde foi acusado Germano Maccari.

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Depois de ter sido posta a circular a notícia da morte de Moro, as Brigadas Vermelhas publicaram uma prova de vida GettyImages

Testemunhas oculares deram conta de uma moto Honda no local, com duas pessoas, em que o passageiro empunhava uma pistola metralhadora. A Honda aparece desfocada numa fotografia recentemente publicada pelo L’Espresso. É um dos muitos fantasmas que povoam o caso. O episódio foi relacionado com uma hipotética “ajuda” da ‘Ndrangheta (máfia calabresa), o que nunca pôde ser provado. Estava no local um oficial dos serviços secretos militares (SISMI), o coronel Guglielmi, que disse lá ter passado por acaso para tomar o pequeno-almoço com um general, mas este negou. Pairou a suspeita de que os serviços secretos estariam a par do atentado. Uma vez mais não há provas. A convicção dos magistrados é que terão sido destruídas muitas provas e produzidas falsificações.

A versão das BR, de que a peça canónica é um Memoriale de Morucci, foi sendo desmentida pelas investigações que, de resto, ainda hoje prosseguem. Na altura em que escreveu, na prisão, o seu Memoriale, Morucci era colaborador dos serviços secretos (SISDE), que terão ajudado à fabricação do texto.

As BR e os “anos de chumbo”

As BR mentiram sempre. O mesmo se passa com o lugar de cativeiro e com a execução. Não se sabe exactamente onde Moro esteve preso. A versão oficial é a das BR — a Via Montalcini, onde de facto havia um esconderijo. A comissão parlamentar de inquérito Fioroni, de 2017, dá outra pista: na Via Massimi n.º 91, um prédio que pertencia ao Vaticano e onde viviam espiões de várias obediências. As BR sempre disseram que Moro foi abatido, com a cabeça coberta por um cobertor, na garagem do esconderijo Montalcini. Na última comissão parlamentar de inquérito, os peritos de balística declararam improvável esta versão, pois dez disparos sem silenciador teriam alertado o prédio. E Moro foi abatido em posição frontal, sentado no cobertor.

Há insinuações de serviços secretos estrangeiros sobre o conhecimento antecipado da preparação do atentado. As BR estavam infiltradas. Uma vez mais, são rumores e não provas. O certo é que a soma das dúvidas suscitou a ideia de uma teia de conspirações.

As BR são indissociáveis dos “anos de chumbo” que fustigaram a Itália. Os movimentos sociais de 1968-69 foram arrasados pelo terrorismo, envolvendo grupos de extrema-direita e de extrema-esquerda, lojas maçónicas mafiosas como a P2, organizações “militarizadas” secretas da NATO, como a Gládio, ou os serviços secretos italianos “desviados”.

O primeiro massacre, de autoria neofascista, faz 16 mortos em 1969 num banco de Milão. Em 1974, há o massacre da estação de Bolonha (85 mortos). Entre 1969 e 1980, registam-se 12.690 atentados, com a morte de 362 pessoas. A extrema-direita e a P2 fomentam uma “estratégia da tensão” para justificar uma deriva autoritária do Estado, com conspirações militares pelo meio.

As BR nascem em 1970 e passam a barreira fatal em 1974, com o rapto do juiz Mario Sossi. Os fundadores são presos em 1975 e Moretti assume a direcção. “O sequestro de Moro foi o nosso tecto, o nível máximo”, disse. As BR queriam ser reconhecidas como interlocutor do Estado numa imaginária guerra civil. Os grupos terroristas multiplicam-se. “Mata-se de forma frenética e niilista”, escreveu o jornalista Corrado Stajano.

Há mais uma sinistra figura associada ao caso Moro: Giovanni Senzani. Criminalista e professor universitário, tem um cadastro revolucionário independente de Moretti. Na altura do sequestro, trabalha no Ministério da Justiça, onde interpreta os comunicados e analisa a táctica das Brigadas. Ao mesmo tempo, informa as BR, suspeitando-se de que possa ter sido o autor das perguntas do interrogatório de Moro. Através das respostas, entrevêem-se perguntas que denotam um profundo conhecimento dos bastidores da política italiana, que Moretti dificilmente teria.

Não será preso, porque um chefe dos serviços secretos afiançou que na altura ele estava nos EUA. Detido Moretti, em 1981, Senzani assume a chefia das Brigadas. O seu crime mais infame é uma espécie de réplica do caso Moro. Interroga, tortura, mata e filma durante 53 dias o martírio do jovem Roberto Peci, apenas por ser irmão do brigadista “arrependido” Patrizio Peci. Será preso em 1982. As BR desmanteladas ao longo dos anos 1980.

A razão de Estado

Sequestrado Moro, abre-se uma crise de Estado. Andreotti é o primeiro-ministro e Francesco Cossiga ministro do Interior. Para os demo-cristãos o dilema é dilacerante. Soltar ou não uma dúzia de brigadistas presos? Abrir ou não negociações? A razão de Estado é invocada para recusar qualquer cedência.

Moro escreve dezenas de cartas da prisão, aos amigos, à família, à DC. Numa carta a Cossiga, invoca a razão de Estado, mas para justificar uma transacção, sublinhando que, em função da própria razão de Estado, esse processo deveria permanecer secreto. As BR publicaram a carta. A “linha da firmeza” vai triunfar. Apenas o Partido Socialista defende e explora uma via de negociação, ao lado da família Moro e alguns intelectuais.

O mais intransigente foi o PCI. Explica o historiador Piero Craveri: “Era o partido mais directamente posto em causa na polémica brigadista, isolado na internacional comunista e em firme confronto com a URSS, entre outras coisas, por causa da possibilidade de entrada no governo de Itália. E preocupado também com qualquer legitimação, mesmo indirecta, à sua esquerda, de um actor como as BR, tendo consciência dos laços desta organização com o mundo comunista.”

A partir do sequestro, entram em acção as potências, designadamente os Estados Unidos, que temem que Moro revele segredos e querem enterrar definitivamente o “compromisso histórico”.

Ferdinando Imposimato, juiz de instrução do processo Moro e mais tarde presidente do Supremo Tribunal, publicou três livros sobre o caso, o último intitulado I 55 Giorni Que Hanno Cambiato Italia. Perché Moro Doveva Morire? (2013). Sublinha o papel de “enviados” estrangeiros, sobretudo o psiquiatra americano Steve Pieczenik, especialista em terrorismo e reféns, que serviu como conselheiro directo de Cossiga. A sua missão oficial era de “negociador”. O seu papel foi impedir qualquer negociação. Declarará numa entrevista em 2008: “Lamento a morte de Aldo Moro; peço perdão à família. Mas tivemos de instrumentalizar as Brigadas para o matarem. (...) Temia que o Estado fosse completamente desestabilizado.” Moro, diz, “foi sacrificado pela estabilidade” da Itália.

A estratégia da “firmeza” foi na prática imobilismo. Em 55 dias, o Estado foi incapaz de libertar a sua mais relevante figura política. Segundo Imposimato, que cita fontes policiais e militares, o general Dalla Chiesa, que depois do rapto assumiu a direcção da luta antiterrorismo, teria descoberto a localização do esconderijo de Moro e proposto uma acção militar. Terá recebido ordens para anular a iniciativa. Mais complicado: no dia 18 de Abril, os serviços secretos fizeram publicar um falso comunicado das BR, anunciando a execução de Moro. Com que ideia?

Ponto fundamental: as ambiguidades do Estado e depoimentos como o de Pieczenik serviram às BR para descarregar sobre os políticos a responsabilidade da morte de Moro, com a cumplicidade de alguns media. Quem tem as mãos manchadas com o sangue de Moro são as BR.

O compromisso histórico

Quatro vezes primeiro-ministro e longos anos nos Negócios Estrangeiros, membro da comissão de redacção da Constituição de 1948, Moro é a mais eminente figura da DC após o desaparecimento de Alcide de Gasperi. É o líder indiscutido da ala esquerda da democracia-cristã.

Nos anos 1960 levou a sério a revolta e a radicalização dos jovens. O mundo mudava. A Itália era uma democracia sem alternância. Moro propunha à DC a abertura de uma nova etapa. Depois da fase das alianças ao centro e do esgotamento do centro-esquerda (com os socialistas), chegara o momento da “terceira fase”: a integração por etapas do Partido Comunista Italiano na área do governo. E ajudar os eurocomunistas a cortarem as últimas amarras com Moscovo. Seria fazer da Itália, finalmente, uma “democracia normal”.

Significava também libertar a Itália da tutela americana. Moro sabia que pisava uma “linha vermelha” da Guerra Fria e conhecia os riscos. Henry Kissinger advertiu-o sobre o “alto preço” que pagaria, se não mudasse de linha política. “Moro foi eliminado, porque a sua política antecipava em dez anos a queda do Muro de Berlim”, escreveu retoricamente Giacovazzo.

Para outro jornalista, Gianni Riotta, “Moro entrará na História como o líder que tentou normalizar a Itália, como um país alinhado do mundo ocidental, mas independente de Washington e de Kissinger, como a França de Gaulle, libertando paralelamente o PCI da marca soviética. Desafio excessivo, entre a miopia americana, o cinismo russo, o provincianismo italiano e a crueldade brigadista”. Era a sua utopia.

A agonia e a escrita

Moro escreve. Escreve cartas que as BR divulgam parcialmente e consumam a sua ruptura política com a DC: “Renuncio a todos os cargos, excluo qualquer futura candidatura, demito-me da DC.” Mas é também ele quem redige os resumos dos interrogatórios, que escrevia à mão e os brigadistas dactilografavam e censuravam. As BR nunca tornaram públicos estes textos. Os primeiros foram descobertos em 1978 e os últimos em 1990, e depois reunidos e comentados pelo historiador Miguel Gotor — Il Memoriale della Repubblica. Gli Scritti di Aldo Moro dalla Prigionia e l’Anatomia del Potere Italiano ( Einaudi, 2011). Moro não revelou nenhum segredo político, diplomático ou militar. Fez antes uma análise cruel do sistema político italiano.

As BR faziam uma dupla aposta com a publicação de parte das cartas de Moro. Destruir a sua imagem política e moral e, ao mesmo tempo, dividir as instituições. Moro nunca sofreu da “síndrome de Estocolmo”. Escreve numa carta à família: “Mesmo na necessidade podemos ser livres.”

“É um homem que vive uma lúcida agonia e escolhe testemunhá-la, o extremo recurso que encontra na escrita o último baluarte”, observa Gotor.

Como era Moro? O programa La Storia Siamo Noi, da RAI, retrata-o assim: “Suave, ligeiramente curvado, parece um homem de outros tempos, com a sua madeixa de cabelos brancos, os olhos aveludados, uma atitude marcada por mistério. Frio, hamletiano, quase angustiado. Transporta consigo, inconscientemente, o despojamento que é próprio dos homens do Oriente. (...) Tem a força da coerência, de uma correcção pessoal, de uma vasta e profunda cultura e ‘o dom divino da dúvida’.”

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