Células dão um “sinal de alarme” antes do cancro do esófago

Equipa de investigadores portugueses acompanhou doentes com esófago de Barrett, uma doença que será causada por refluxo crónico, e detectou uma anomalia nas células ainda na fase pré-maligna dos casos que mais tarde evoluem para cancro.

Foto
Da esquerda para a direita: uma célula normal com um só centrossoma (a amarelo), o aumento de centrossomas na fase da metaplasia em doentes com esófago de Barrett, o início da neoplasia (displasia) e, por fim, o cancro com muitos centrossomas Lopes, Mesquita et al., 2018

São os centrossomas, uma espécie de torre de controlo das células que é fundamental no processo de divisão celular, que fazem soar a campainha de alarme antes do cancro do esófago. Uma equipa de investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, e do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa analisou várias amostras de doentes com esófago de Barrett, uma doença que está associada ao cancro do esófago, e concluiu que as células que se vão tornar cancerosas começam a acumular centrossomas ainda numa fase pré-maligna. Este sinal de alerta pode servir como uma importante ferramenta de diagnóstico para este e outros tipos de cancro.

Nas células saudáveis só existe um centrossoma. Por outro lado, uma das características que distinguem as células cancerosas é precisamente o facto de terem centrossomas a mais. Estes são, portanto, os cenários que já conhecíamos há muito tempo: um centrossoma nas células saudáveis e muitos no cancro. O que a equipa liderada por Mónica Bettencourt Dias, do IGC, e Paula Chaves, do IPO, nos mostra agora é um momento que fica no meio destes dois cenários.

Num artigo publicado esta terça-feira na revista Journal of Cell Biology, os investigadores concluem que a amplificação dos centrossomas nas células que se vão tornar cancerosas começa ainda na fase pré-maligna nos doentes com esófago de Barrett. Ou seja, há um “sinal de alarme” numa fase precoce, antes da neoplasia, para os casos que vão evoluir para cancro. E, segundo Carla Lopes, investigadora do IGC uma das primeiras co-autoras do artigo assinado ainda com Marta Mesquita, do IPO, este sinal pode servir não só para o cancro de esófago mas para outros tipos de cancro.

Menos de 1% dos doentes com esófago de Barrett, uma doença que será causada pela exposição prolongada a ácidos do estômago por refluxo crónico, evolui para cancro do esófago. No entanto, uma vez que esta doença se caracteriza por uma mudança anormal (uma metaplasia) nas células do tecido do esófago, estes casos são normalmente acompanhados e vigiados. Os investigadores do IGC e IPO aproveitaram esta vigilância para analisar amostras de tecido recolhido nas endoscopias e biópsias. A área clínica uniu-se à investigação básica. “Este modelo de cancro é muito interessante porque permite observar várias fases, desde a condição pré-maligna, que é a metaplasia, à que vem a seguir, a displasia, que é já o início do processo de transformação e depois o carcinoma, que é o cancro”, refere Mónica Bettencourt Dias ao PÚBLICO.

As amostras analisadas abrangem um período de cinco anos de acompanhamento e dividem-se em dois grupos de doentes. “Queríamos perceber quando é que esta amplificação dos centrossomas aparecia. Porque há muitas pessoas que acreditam que este é um processo que só acontece quando as células já estão muito desreguladas, lá para a frente no cancro. O que o nosso estudo indica é que conseguimos ver isso muito cedo, quando a metaplasia começa, mas nunca no tecido normal”, resume Mónica Bettencourt Dias. Assim, especifica Carla Lopes, no grupo principal de doentes que foi analisado com maior detalhe incluem-se seis amostras de casos que não progrediram para cancro e cinco amostras de casos que evoluíram para cancro. A análise foi ainda complementada com os resultados de mais 22 biópsias de doentes que não evoluíram para cancro e 14 amostras de doentes com cancro do esófago.

O gene-polícia

“Vimos que nas metaplasias que progrediram para cancro já existiam alterações nas células na amplificação de centrossomas, enquanto nas metaplasias que não progrediram para cancro estas alterações não foram detectadas”, refere Carla Lopes. Há, portanto, uma campainha que toca. Mas não só. Os investigadores também verificaram que há um aumento significativo da amplificação dos centrossomas no início da fase seguinte (na displasia), como se o som dessa campainha subisse de tom. O agravar deste sinal de alarme é acompanhado pela perda ou mutação de um gene que tem um papel decisivo nos cancros humanos e no controlo da proliferação das células, o supressor tumoral p53.

“O p53 é quase como um polícia das células, ele detecta erros e quando os detecta é activado para levar aquela célula à sua morte ou à senescência que faz com que pare de crescer”, explica Carla Lopes. Quando perdemos este gene ou ele sofre alguma mutação, as células com erro conseguem sobreviver.

No estudo, os investigadores confirmaram a importância da acção deste polícia. É que, apesar da alteração nas células surgir ainda na fase da metaplasia, é no início da fase da displasia que se regista uma amplificação dos centrossomas mais evidente (entre duas a três vezes mais) e será nesta etapa que há uma perda ou mutação do p53. Sem este controlo, as células com centrossomas a mais podem então sobreviver e proliferar, dando origem a células com números anormais de cromossomas que se podem tornar células malignas.

O rastilho da inflamação

Apesar do óbvio “sinal de alerta” identificado pelos investigadores, é preciso fazer e saber mais para concluir que estamos perante um marcador que pode ser usado na prática clínica para distinguir os casos que vão evoluir para cancro. “Esse será o próximo passo. Seria importante perceber se isto é uma ferramenta que podemos usar para prognóstico. O que vimos indica que sim, mas ainda não podemos afirmar isso agora, porque precisamos de mais amostras e ao longo de mais tempo”, confirma Mónica Bettencourt Dias.

Fica também por esclarecer o que faz com que, ainda na fase pré-maligna, algumas células comecem a aumentar os centrossomas. Será algo associado ao refluxo ácido que provoca esta alteração? E será que este “sinal de alerta” pode ser detectado noutros tipos de cancro? Carla Lopes acredita que sim. “O refluxo é o causador de um processo de inflamação. Os processos de inflamação, com diferentes agentes causadores, estão presentes em quase todos os tipos de tumores e são muito importantes nas fases iniciais de desenvolvimento do cancro. A nossa ideia é que, mesmo com diferentes agentes causadores, o ambiente de inflamação poderá contribuir para esta alteração nos centrossomas das células.” Falta, então, procurar o mesmo som da mesma campainha noutros tumores.

Sugerir correcção
Comentar