Carta aberta aos cidadãos da União Europeia e aos chefes de Estado e de Governo dos Estados-membros

Queremos inventar uma nova etapa da democracia europeia neste período de transformação sem precedentes.

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ALESSANDRO BIANCHI/REUTERS

Neste período de recuperação económica e relativa acalmia, nós, europeus, esquecemos que, ainda há pouco, estivemos perto do abismo e que a nossa realidade permanece cheia de incertezas tanto geopolíticas como financeiras, com um nível recorde de endividamento na Ásia e na América, e que isso pode provocar uma nova crise económica global.

Há exactamente dois anos, lançámos nos principais jornais diários do continente um apelo para um novo renascimento europeu. A nossa preocupação era evitar a implosão da União Europeia num período de crise política sem precedentes, de populismo e de nacionalismo. A nossa convicção, a de que apenas uma dinâmica unindo os líderes de opinião e cidadãos de todas as sensibilidades criaria a pressão política suficiente para garantir a unidade dos 27 em caso de voto negativo no referendo sobre a pertença do Reino Unido à União. Os líderes europeus tinham de facto aceite o pedido de David Cameron para não preparar um plano B, susceptível, segundo ele, de aumentar os riscos de um desfecho desfavorável.

O nosso apelo foi, nessa altura, muito bem acolhido. Dezenas de milhares de cidadãos reagiram por todo o continente. Chefes de Estado e de Governo receberam-nos e, acima de tudo, acolheram a nossa dupla recomendação: unidade na negociação e esboço de um roteiro para a revitalização da União. Os presidentes da Comissão Europeia e do Conselho solicitaram que reflectíssemos sobre o conteúdo deste roteiro e, mais amplamente, sobre como melhor articular a soberania nacional e europeia. Isso foi feito no relatório O Caminho Europeu para um Futuro Melhor que lhes entregámos há um ano. A essência das nossas propostas tem sido, desde então, objecto de um forte apoio político, tanto por parte do presidente da Comissão Europeia na sua última declaração sobre o Estado da União, como do Presidente da República francesa nos seus importantes discursos na Sorbonne e em Estrasburgo, assim como nos marcantes discursos do primeiro-ministro português em Bruges e Estrasburgo. O Parlamento Europeu também a apoiou.

Algumas das nossas recomendações estão a tornar-se realidade, tais como as consultas dos cidadãos que tiveram início em alguns Estados-membros, a nova prioridade dada à inteligência artificial pela Comissão Europeia, o trabalho realizado em matéria da qualidade da informação, a modernização do modelo social europeu, ou ainda o projecto de um Erasmus para alunos do ensino secundário, permitindo finalmente que todos tenham uma experiência humana e pessoal da União desde a adolescência. Estes avanços terão que ser confirmados por um orçamento que permita democratizar o Erasmus, manter um programa ambicioso para a cultura e aumentar o esforço de investigação e desenvolvimento a longo prazo. Estamos, portanto, satisfeitos com o nosso sucesso, mas não estamos menos preocupados.

A forte vontade de Europa manifestada pelos nossos concidadãos após o referendo britânico ameaça vacilar, se as palavras dos líderes não forem acompanhadas por actos concretos. Os últimos resultados eleitorais continuam a mostrar um crescimento dos partidos populistas. Pior ainda, o respeito pelo Estado de direito e pelos valores fundamentais que estão no centro do projecto europeu, incluindo o pluralismo dos meios de comunicação e a liberdade de expressão, nunca pareceu tão ameaçado no seio da União. Esta entra, no entanto, num novo período de letargia, enquanto o "Brexit" será uma realidade em menos de um ano.

Neste dia 9 de Maio, Dia da Europa, apelamos a um novo passo em frente dos governantes, mas também dos cidadãos, líderes de opinião, líderes sindicais e empresários do nosso continente. Parece-nos essencial que o Conselho Europeu em Junho se comprometa em relação a um plano de recuperação europeia, feito de acções concretas com um impacto positivo no dia-a-dia e no futuro dos nossos concidadãos, bem como um calendário preciso para a sua implementação, incluindo a reforma da zona euro. Caso contrário, nas próximas eleições europeias, assistiremos a um aumento sem precedentes das forças populistas. Encorajamos, portanto, a participação de todos os europeus nas consultas cidadãs, na esperança de que elas consigam incluir os mais vulneráveis e dar origem a uma verdadeira auscultação das diferentes opiniões manifestadas. Mas a nossa crença é que será preciso ousar ser ambicioso, neste período de transformação sem precedentes. É por isso que queremos inventar uma nova etapa da democracia europeia.

Propomos criar um direito à participação contínua de todos na vida política da União e convidamos todos aqueles que o desejem a juntar-se a nós para, juntos, construirmos uma plataforma cívica – civico.eu – permanente, transnacional e multilingue, permitindo aos cidadãos europeus, não só serem consultados, mas serem eles próprios iniciadores de um diálogo cívico directo com o objectivo de fazer surgir propostas concretas que alimentem continuamente as instituições europeias. As tecnologias digitais, a tradução automática avançada, a inteligência artificial, permitem pensar a democracia de uma forma diferente. Não se trata, de forma nenhuma, de acabar com a democracia representativa, mas de a completar através de uma ferramenta de democracia deliberativa e participativa contínua. Acreditamos mais do que nunca na necessidade de os nossos concidadãos se constituírem numa força cívica transnacional.

Setenta anos depois do Congresso da Haia, verdadeiro acto fundador da União Europeia, apelamos a que, antes do final do ano, se realize um novo Congresso das consciências europeias, que reúna cidadãos, líderes de opinião e dirigentes de todos os quadrantes, para escreverem juntos uma página inédita da nossa história comum. É ao apostar simultaneamente em avanços concretos e rápidos, numa renovação democrática que garanta os nossos valores fundamentais e na união de todas as boas vontades, que vamos restaurar a confiança entre os cidadãos e as instituições europeias num espírito de renovada solidariedade. Esta é a condição essencial para permitir que a União se transforme numa grande potência democrática, cultural, social, ecológica e industrial, capaz de exercer uma influência decisiva sobre a evolução do planeta, defender os interesses dos europeus e contribuir para um mundo melhor.

Guillaume Klossa (FR), fundador do CIVICO-Europa, dirigente empresarial e ensaísta; Alberto Alemanno (IT), professor de Direito; László Andor (HU), economista e antigo comissário europeu; Lionel Baier (CH), realizador; Miklos Barabas (HU), director, Maison de l’Europe; Enrique Baron Crespo (ESP), antigo presidente do Parlamento Europeu; Jean-Louis Borloo (FR), antigo ministro de Estado, advogado; Sylvain Bonnet (FR), empresário; Elmar Brok (DE), eurodeputado e antigo presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do PE; Philippe de Buck (BE), antigo director-geral da BusinessEurope, membro do Comité Económico e Social europeu; Thomas de Charentenay (FR), empresário; Daniel Cohn-Bendit (FR/DE), antigo presidente do Grupo "Os Verdes" do PE; Georgios Dassis (GR), sindicalista e antigo presidente do Comité Económico e Social europeu; Christophe Galfard (FR), astrofísico e escritor; Aart de Geus (DE), presidente da Fundação Bertelsmann; Felipe Gonzalez (ES), antigo primeiro-ministro, antigo presidente do Grupo de Reflexão sobre o Futuro da Europa, Conselho Europeu; Sandro Gozi (IT), ministro dos Assuntos Europeus; Danuta Huebner (PL), antiga comissária europeia, presidente da Comissão dos Assuntos Constitucionais do PE; Ulrike Guérot (DE), directora do European Democracy Lab; Alain Juppé (FR), antigo primeiro-ministro, presidente da Câmara de Bordéus; Alain Lamassoure (FR), eurodeputado, antigo ministro; Jo Leinen (DE), eurodeputado e antigo presidente do Movimento Europeu internacional; Jonathan Moskovic (BE), membro fundador do CIVICO-Europa, co-coordenador do projecto G1000; Ferdinando Nelli Feroci (IT), presidente do IAI (Istituto Affari Internazionali); Catherine Noone (EIRE), senadora, presidente da Assembleia Cidadã da Irlanda; Guilherme d’Oliveira Martins (PT), administrador da Fundação Gulbenkian, antigo ministro; Erik Orsenna (FR), escritor; Jean Quatremer (FR), jornalista e ensaísta; Francesca Ratti (IT), presidente do CIVICO-Europa; Maria João Rodrigues (PT), antiga ministra, vice-presidente do Grupo Socialistas e Democratas do PE; René van der Linden (NL), antigo presidente da Assembleia do Conselho da Europa, antigo presidente do Senado holandês; Guy Verhofstadt (BE), antigo primeiro-ministro e presidente do Grupo dos Liberais, PE; Vaira Vike Freiberga (LAT), antiga Presidente da Letónia; Cédric Villani (FR), matemático, Medalha Fields, deputado; Luca Visentini (IT), secretário-geral da Conferência Europeia dos Sindicatos; Wim Wenders (DE), cineasta (selecção de nomes de uma longa lista)

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