“Escrever sobre o presente é como caminhar à beira do precipício: podemos cair”

No seu primeiro romance enquanto cidadão americano, A Casa Golden, Salman Rushdie escreveu sobre o aqui e o agora do país onde escolheu viver em 1999. O actual momento de estertor, aquele estertor que costuma preceder a morte, também pode ser o seu contrário: como tudo o que se pode dizer sobre a América...

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“É para Nova Iorque que vêm todos quantos se querem reinventar”, diz o indiano, britânico e agora também americano Salman Rushdie, o escritor que enfrentou a fatwa e agora quer viver uma vida normal nesta cidade onde pode estar na rua como um anónimo. A capa ampliada desse livro que o forçou a anos de vida clandestina está colada na parede do seu gabinete de homem livre, uma sala num edifício da Bowery, onde ensina a cadeira de Não-ficção Literária a alunos do curso de Jornalismo da Universidade de Nova Iorque. Vive próximo dali, nesta cidade onde chegou em 1999 e onde de certa forma também se reinventou. Nas últimas eleições já votou – e também ele foi um dos perplexos da noite de 8 de Novembro de 2016.

Meses depois, terminava um novo romance, A Casa Golden, agora editado em Portugal pela Dom Quixote: a tragédia de uma família que chega de longe como tantas famílias, também ela para reescrever a sua vida, e se confronta com a tragédia de um país e de uma cidade. A figura de Donald Trump, que aparece como Joker, paira sobre esta história que parece ter sido escrita de forma rápida para tentar dar forma ao que se passa neste país que agora também é o de Rushdie. Na verdade, explica ao Ípsilon nesta entrevista, o livro começou a ser escrito dois anos antes das eleições, mas continua a ser sobre este presente de profunda crise de identidade, uma crise de identidade em que, diz o escritor, ecoa o estertor antes da morte de uma certa América branca, uma América ameaçada. 

A Casa Golden foi publicado em 2017, poucos meses após a tomada de posse de Donald Trump, que já surge no livro como presidente eleito. É muito raro isto acontecer na ficção. Quais foram as dificuldades e os desafios de escrever sobre este presente tão imediato? 
Geralmente aconselha-se a não o fazer. Eu costumo dar esse conselho, é um bom conselho. Porque é suposto haver distância para que se possa ganhar objectividade e perspectiva. É muito arriscado tentar escrever sobre o exacto presente porque se se tocar a nota errada o livro torna-se rapidamente irrelevante, como os jornais de ontem. Mas se formos capazes de o fazer bem, como Scott Fitzgerald na maior parte da sua ficção — o que faz com que hoje o olhemos como um dos grandes autores da era do jazz —, consegue-se captar o momento, fixar o tempo. Mas é muito difícil. O risco é comparável ao de caminhar à beira do precipício: podemos cair. É perigoso e excitante, achei que podia tentar.

A sensação é a de que o romance foi todo escrito após a eleição, mas começou-o bastante antes. 
Sim. Estava praticamente terminado quando se deu a eleição. Depois trabalhei só um bocadinho nele, quase nada.

Como se tudo indicasse que seria esse o desfecho?
O que estava a acontecer na América e levou Trump ao poder iria acontecer de qualquer maneira. Esta sociedade está completamente dividida, uma divisão que tem também a ver com aquilo em que se pode  ou não acreditar, com o que é verdadeiro e o que é falso, etc. Isso já estava lá e continuaria a ser o cenário na América, mesmo que a eleição tivesse seguido a outra direcção. Na verdade, o livro adivinhou melhor do que eu o que estava prestes a passar-se, porque na minha vida do dia-a-dia eu estava muito esperançado de que tal desfecho não aconteceria. Mesmo quando fui votar pensei que talvez naquela noite se celebrasse uma mulher presidente. O livro, por outro lado, entendeu perfeitamente bem o que estava em causa e insistiu em ir numa determinada direcção.

Mas, como disse, se Hillary tivesse vencido, a hipótese de esse dado alterar a situação do país seria mínima, porque a situação é a situação. Acredito que Trump é mais um efeito do que uma causa. Há uma grande discussão entre a América metropolitana e urbana e as pessoas que vivem fora das grandes cidades. E uma grande, grande divisão, exactamente a mesma que se defrontou em Inglaterra com o Brexit. É o campo contra a cidade; o campo, de alguma maneira, a castigar a cidade. E aqui há ainda o peso extra desta imensa dimensão racial: pensou-se que a eleição de Obama foi o princípio de um tempo melhor para as relações raciais na América, mas de facto foi o início de um tempo pior. Alguns americanos responderam com a supremacia branca. Não conseguiram suportar a ideia de terem um homem negro a dizer-lhes o que fazer durante oito anos. 

A dada altura no romance refere a existência de uma espécie de vingança branca. 
Como muitos destes fenómenos, este nasce do medo. A mistura étnica neste país está a alterar-se de maneira dramática e dentro de poucos anos os brancos serão uma minoria. Isso, para eles, é um motivo de medo: foram eles que governaram o país desde a sua fundação e essa base está a ser delapidada. Vejo isto como uma espécie de estertor dessa América, o estertor antes da morte. Mas sempre que se fala da América uma coisa e o seu oposto podem ser verdade ao mesmo tempo. 

Aliás esse é um aspecto que está neste romance, o paradoxo no país, em cada cidade, em cada ser humano que se interroga sobre até que ponto o bem pode conter o mal e vice-versa.
Eu quis sublinhar isso. Situar o romance naqueles jardins que existem de facto [os MacDougal-Sullivan Gardens, em West Village] surgiu-me como um modo de enclausurar o mundo privado do livro, como se estivéssemos num teatro...

No caso, um teatro público.
Sim, onde cada um pode observar a vida de todos os outros. As vidas daquelas pessoas podem ter lugar naquele espaço delimitado; tudo o que as rodeia é uma espécie de loucura que vem da cidade e do país. E tanto na esfera privada como na esfera pública penso esse fenómeno como uma tragédia. Há elementos cómicos, porque há elementos cómicos em Trump, como também há elementos cómicos na família Golden. Talvez seja uma comédia trágica, mas é uma comédia trágica privada dentro de outra comédia trágica pública. Foi assim que construí o livro. 

Nesse espaço há uma família acabada de chegar que permanece um mistério para os que já lá estavam, a família à qual chamam Golden, e um rapaz nova-iorquino, René, aspirante a realizador, que a observa. Nesse acto de exposição e observação recorre à mitologia clássica, mas também a livros como A Metamorfose, de Kafka, como metáfora. Pode explicar estas opções?
A Metamorfose reflecte muito bem esse sentimento de horror sobre nós próprios. Nero Golden sente que está a passar por uma transformação, mas isso também o horroriza, tem um conflito muito grande com isso – como o insecto de Kafka. A história de Kafka é sobretudo sobre as reacções dos outros, sobre como o mundo, incluindo as pessoas que mais se preocupam connosco, reage a uma transformação. Quanto à tragédia grega, há esta coisa: desde o momento em que a peça começa, sabe-se o que vai acontecer. Em Ésquilo sabe-se que Clitemnestra mata Agamémnon, mas simplesmente continuamos a ver e esperamos que aconteça. Muito do sentimento de assistir a estas peças tem a ver com o medo e a antecipação do que se sabe ser inevitável. Esse sentido de inevitabilidade apresenta-se inescapável. É esse o sentido da tragédia grega, não se pode escapar ao destino, e se se tentar ele vai estar à espera ao virar da esquina. Neste romance temos um grupo de pessoas que elabora um esquema complexo para escapar ao seu destino até ele vir ter com elas. Como leitor, acho que se sabe que, seja qual for o destino delas, ele irá surgir. Quis que fosse esse o tom à volta de Nero Golden.

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E cada um de nós, leitores, sente estar a partilhar com eles a tragédia colectiva do presente.
É An American Tragedy [1925], o tal título de um grande romance de Theodore Dreiser [risos]... O que há de estranho em tudo isto é que houve livros que anteciparam este momento e em que ninguém acreditou. Como o romance de Sinclair Lewis, Isso Não Pode Acontecer Aqui [1935]. Mesmo mais recentemente, quando Philip Roth escreveu A Conspiração Contra a América [2004]... Sou grande admirador e amigo de Roth, mas lembro-me de ter pensado “eu não acredito nisto, não compro a ideia de haver uma revolta fascista na América”. Ele mesmo disse que não o escreveu a pensar que seria um romance profético sobre o fascismo na América, antes para ser um romance sobre anti-semitismo – mas antecipou com grande precisão os passos com que tudo está a acontecer. O primeiro passo foi a eleição de um tirano, autoritário, que quer desacreditar a verdade. É sempre esse o primeiro passo: “Não acreditem no que vos dizem, é tudo mentira, com o propósito de vos oprimir”. E o segundo passo, ou a segunda frase, é: “Só eu sou a verdade”. Quando se é capaz de fazer isto, temos as bases da tirania.

Não subscrevo a ideia de que há apenas uma verdade absoluta, mas quando se chega a este território embaciado em que temos de viver... O nível de não-verdade agora é de uma não-verdade que vai nua. Portanto, não é tanto a verdade que mudou; mudou a não-verdade e mudou o modo como neste país as pessoas parecem conseguir safar-se com mentiras. Simplesmente elas são tantas que ninguém consegue mantê-las todas... Ontem uma notícia dizia que o Presidente fez 3004 declarações desde que está no poder. Ninguém pode corrigir três mil mentiras. Parece que o segredo da mentira é estar sempre a mentir sem parar e criar uma realidade paralela. É o que ele está a tentar fazer: está a tentar criar uma maneira inteiramente nova de olhar para o que está a acontecer na América. 

Quando terminou o livro foi capaz de entender melhor o que se passa?
Sim. A minha abordagem à escrita mudou muito [com os anos]. Quando comecei, precisava de ter tudo muito bem estruturado antes de escrever; precisava de ter uma arquitectura muito complexa para saber exactamente o que iria acontecer a quem, onde. Em Os Filhos da Meia-Noite [1981], por exemplo, os acontecimentos ficcionais estão tão cozinhados uns com os outros que eu tinha de ter aquele plano; tinha de pensar que aquilo iria acontecer àquele membro da família no tempo de um determinado acontecimento histórico. Se não tivesse aquele mapa teria sido muito difícil chegar à forma do livro.

Agora não escrevo assim, e cada vez vez mais vejo a escrita como um acto de descoberta acerca do que estou a escrever. Não me lembro de qual foi pessoa sábia que disse que um romancista é uma pessoa que não sabe o que está a fazer. Para mim isso é verdade. No início do livro sinto-me quase um ignorante; há apenas uma visão nebulosa do que pode vir; não sei bem por onde ir e espero que no fim dessa longa jornada possa chegar a um lugar mais inteligente do que aquele de onde parti. Agora isso acontece-me dia após dia, frase após frase; ao escrever, descubro a personagem a fazer coisas que nunca tinha pensado que ela poderia fazer. 

Sabe situar esse novo modo de encarar a escrita?
Acho que começou com o romance Shalimar, o Palhaço [2005], em que tudo o que tinha para começar era a imagem de um assassínio. Na minha cabeça havia um homem morto, na estrada, e, ao pé dele, outro homem com uma faca. E, por alguma razão, sabia que na casa de trás estava a filha do homem morto. Não sabia quem eram eles. Todos os dias acordava com esta imagem e perguntava “o que é isto?, por que é que estou a pensar nisto?”. Comecei a tentar perceber escrevendo. Foi assim que esse romance me chegou, e gostei do modo como me apareceu. Era como se estivesse a escutar aquelas personagens. Havia ainda uma quarta, a mãe da rapariga. E todos os dias me sentava a pensar: “o que é que precisam de mim hoje?”. Elas mostravam-me como avançar. Quando terminei pensei que gostava deste modo de fazer em que não sou o ditador do livro, antes um criado, um servo do livro. Prefiro assim. 

Matou o deus que havia no autor.
Foi. Foi só deixar que a mente fosse para um lugar onde não vai de forma automática. De outro modo não nos surpreendemos. Uma das alegrias de escrever é poder surpreender-me, pensar em coisas que achava que nunca seria capaz de pensar. Não entendo a química cerebral por trás de muitas coisas que acontecem, mas há qualquer coisa no acto de criação — talvez tenha a ver com a concentração extrema — que faz o cérebro funcionar de uma maneira diferente. O modo como sou quando não estou a escrever não é o modo como sou quando estou a escrever. Acho que o eu a que se tem acesso no acto de criação é o nosso melhor eu: é onde se é mais aberto, mais verdadeiro, onde se tem pensamentos mais originais. A boa escrita é feita nesse eu melhor e a escrita pior vem do eu mais programático, quando se está consciente e racional. Eu sei fazer isso. Posso sentar-me e começar a escrever uma história em que tenha pensado, mas essas não são as histórias que agora quero escrever. Quero escrever estas outras descobertas. 

Voltando ao princípio de tudo neste romance: ao lê-lo, o primeiro impulso é pensar que tudo terá começado no momento de perplexidade que foi a vitória de Donald Trump. Não tendo sido esse o primeiro momento, qual foi então?
A génese veio de dois lugares diferentes. A personagem de Nero Golden andava na minha cabeça desde o ataque terrorista em Bombaim [Novembro de 2008]. Uma das coisas que me interessou foi a descoberta da ligação entre a Jihad do Paquistão e as máfias de Bombaim dominadas pelos muçulmanos; o facto de terem trabalhado juntas nisso. Depois, quando se é de Bombaim, sabe-se que a máfia está muito envolvida na vida da cidade e tem um papel enorme na indústria do cinema. Pensei que se tivesse esse triângulo — riqueza extrema, as máfias criminosas e os terroristas internacionais — e pusesse uma personagem no meio, seria uma personagem interessante. Foi assim que apareceu Nero Golden. Não sabia como se iria chamar, mas queria contar a história de alguém que se vê envolvido nesse mundo muito sujo e quer fugir dele; elabora um esquema complicado para sair, mas falha porque ele vai atrás dele.

Tive essa história durante quase dez anos e depois aconteceu outra coisa. O meu romance anterior, Dois Anos Oito Meses e Vinte e Oito Noites [2015], era também sobre Nova Iorque, mas quase como um conto de fadas,  com génios e tapetes voadores. Escrevi-o daquela forma por estar interessado no que se estava a passar na literatura americana, com tantos escritores imigrantes, de tantos lugares diferentes: Junot Diaz, da República Dominicana, Yiyun Li, da China, Jhumpa Lahiri, do Sul da Ásia, Chimamanda Ngozi Adichie, da Nigéria, Edwidge Danticat, do Haiti... Todos se definem como escritores americanos mas trouxeram para a literatura americana histórias e maneiras de ser e de pensar de outros lugares. Pensei que podia fazer isso. Também tenho material na minha bagagem, e tentei escrever um romance muito contemporâneo sobre Nova Iorque, mas usando a linguagem e a forma dessas fantasias antigas. Gostei muito de o fazer, mas quando acabei pensei que com aquele livro tinha levado ao extremo esse tipo de escrita, altamente efabulado e fabuloso, e não havia outro lado para ir nesse campo. Não queria escrever outro romance como aquele. Estava feito. Qual era o oposto daquilo? Um romance social sobre Nova Iorque. 

Realista?
Sim, que lidasse com os temas sociais do tempo. Os escritores em que pensei não eram exactamente realistas.

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E quem eram?
Por exemplo, [Charles] Dickens. Em Dickens, o background do romance é hiper-realista, incrivelmente detalhado, e é nesse cenário que ele projecta personagens maiores do que a vida. Essas personagens têm raiz no mundo real e é por isso que acreditamos nelas. Mas ao pensar neste romance, tive ainda outra ideia: a ópera. A ópera parte de situações humanas muito reais, situações de crise, mas amplia as personagens. A dado momento do romance, o jovem René, o aspirante a realizador, que é um pouco vaidoso acerca do seu talento, diz que gostava de criar uma coisa a que chama de realismo operático. Era isso que eu pensava que estava a fazer: a escrever um romance que caísse no espectro do realismo, mas fosse o final operático desse espectro. Comecei então a ler romances realistas sobre Nova Iorque. Li Washington Square, de Henry James, Another Country, de James Baldwin — que se desenrola no mesmo bairro do meu romance —, A Idade da Inocência, de Edith Wharton, escritores que tiveram a ambição de escrever romances sociais sobre o seu tempo. Tudo isso ajudou. E de repente pensei que era óbvio que aquela personagem que andava comigo há tantos anos viria para aqui. É para aqui que vêm todos quantos se querem reinventar. Seria completamente natural que para fugir de tudo o que lhe aconteceu na Índia Nero Golden acabasse em Nova Iorque. Essas duas coisas juntas fizeram clique e eu disse: é este o livro que vou escrever. 

No romance surgem muitos nomes reais, mas o de Trump não aparece. 
Não queria o nome Trump no meu livro [risos]. 

E tendo Trump começado neste seu percurso como uma espécie de piada ["joke"], chama-lhe Joker. 
É uma piada que não tem graça. E o Joker, no Batman, é alguém que se apresenta a si mesmo como uma figura cómica, mas que é na verdade muito assustadora. Ainda há ainda outra piada: no baralho de cartas só duas, Joker e Trump, não se comportam como as outras. Não quero a carta Trump, prefiro o Joker. 

Estamos, portanto, numa sátira política.
Há elementos de sátira política no romance. Quando se sugere, por exemplo, que  a D.C. [Washington] política está a ser tomada pela DC Comics [actualmente uma divisão da Warner Bro., esta editora é um dos gigantes da banda-desenhada e do entretenimento americano], surgem uma espécie de vilões de banda desenhada. Ora, numa cidade com vida real e problemas reais, quando esses vilões ascendem ao poder tornam-se personagens grotescas. Portanto, se há um elemento de sátira política no livro é isto que se está a tentar dizer. 

Há um momento em que compara antigos impérios e as suas capitais com a América e Nova Iorque para dizer que se anuncia o fim do império americano... Nova Iorque é o símbolo de um império a acabar?
E há outra coisa que me interessa muito. É que penso em mim como um escritor da grande cidade. Há três grandes cidades na minha vida que definem tudo o que escrevi. 

E que o definem a si?
Sim. Mais do que dizer que sou da Índia ou de Inglaterra ou da América, sou um escritor da cidade grande. Bombaim, Londres, Nova Iorque. A cidade grande é o lugar onde todo o tipo de vida colide e coexiste com todo o tipo de outra vida. Isso, para mim, é um tema muito rico. E que tal escrever sobre isso, sobre o que é viver nesta grande cidade neste momento? Acho que todas estas cidades ecoam umas nas outras. Mudei-me para aqui no fim de 1999, há 18 anos e meio. Acho que ter vindo não mudou muito a minha escrita, mas mudou o assunto. Publiquei O Chão Que Ela Pisa em 1999 e metade desse livro também é sobre Nova Iorque, mas é sobre uma Nova Iorque diferente, a Nova Iorque dos anos 70, de quando eu era jovem e vim cá pela primeira vez, como um visitante. Depois há Fúria, que foi publicado a 11 de Setembro de 2001, coincidência terrível. Esses livros são reveladores do meu interesse por Nova Iorque e os dois últimos resultam inteiramente de viver aqui há algum tempo. A diferença é que agora vivo aqui há muito tempo. Quando escrevi Fúria tinha acabado de chegar e queria escrever um romance sobre o momento da chegada; quase 20 anos depois posso escrever sobre Nova Iorque de outra forma. Continuo a achar que há um tipo de romance sobre Nova Iorque que não é para eu escrever.

E que tipo de romance é esse?
É o tipo de romance escrito por pessoas que nasceram e viveram aqui. Se ler Don DeLillo, nascido e criado no Bronx, vê que não posso fazer isso, nem sequer tentar. Mas esta é também uma cidade de imigrantes, de pessoas que vieram de todo o lado, e é isso que a estátua no porto [a Estátua da Liberdade] está a dizer. Achei que podia escrever sobre essa cidade. Neste romance, nos jardins, e à excepção de René, todas as personagens vêm de outros países.

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René é o observador.
Sim. Mesmo os pais dele são de outro país, mas ele é o único nascido e criado ali. Quis ele não fosse como eu, nesse sentido, que não fosse um imigrante; quis que fosse branco e muito, muito mais novo. E ele tem outra coisa muito típica da juventude: uma auto-confiança completamente injustificada; não fez nada, nunca realizou um filme, mas pensa que vai fazer um Decálogo melhor do que o de Kieslowski. Diverte-me que ele tenha esse tipo de pretensão, uma elevada ideia de si mesmo. Quis que esse jovem desse a perspectiva do romance, olhando para esta cidade cheia de histórias de pessoas de todos os outros lugares. Uma das coisas que me acontecem como escritor é as pessoas continuarem a procurar por mim em cada livro, jogando a adivinhar em que personagem se pode encontrar o ponto de vista do autor...

E há Rushdie em René?
Estou quase obsessivamente determinado a que as pessoas não sejam capazes de responder a essa questão. Neste e noutros livros. A que não sejam capazes de saber onde estou [risos].

É um jogo?
É um acto de libertação. Há um modo de escrever que é escrever próximo de nós mesmos; há um modo em que Stephen Dedalus e James Joyce estão próximos um do outro, mas mesmo assim não são o mesmo. Marcel não é Proust, para começar porque Marcel é heterossexual e Proust não. Quando Bellow escreve Herzog, escreve muito próximo de si mesmo, e isso é muito legítimo de se fazer, ainda que se infira que o verdadeiro eu é diferente do eu ficcional, mas deliberadamente feito para ser próximo. Há um livro em que fiz isso, mas já não me interessa fazê-lo. Acho que se assume que se trata de uma simples biografia, se se tem uma personagem que é como nós. Por exemplo, em Fúria, a personagem principal tem a minha idade, o mesmo tipo de história pessoal e, como eu, acaba de chegar a Nova Iorque; isso foi deliberado, mas depois há o assumir da parte de quem lê que tudo o que lhe acontece é a minha vida, embora nada do que lhe aconteça seja a minha vida.

Escreveu as suas memórias anos depois.
Sim. E com isso digo: “aqui está o eu real”. Mas já não me interessa ter essas personagens que estão próximas de mim. Já fiz, muito bem, não faço mais. Não me tornei um romancista para escrever sobre mim, antes para escrever sobre outras pessoas. 

Tem-se falado deste livro como um conto sobre Nova Iorque. Isso leva-o inevitavelmente a ser comparado com romances famosos de outros escritores. Insiste-se num: O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald. Concorda com a comparação?
Pois, há muitos escritores que escreveram sobre Nova Iorque. Mas o engraçado é que o livro tem sido comprado com O Grande Gatsby [1925], com A Fogueira das Vaidades [Tom Wolfe, 1987] e com O Padrinho [Mario Puzo, 1969], e é impossível a um livro ser ao mesmo tempo como estes três. Tirando isso, são comparações muito lisonjeiras. Consigo ver O Padrinho, porque há gansters no meu livro, e A Fogueira das Vaidades [1987], porque Tom Wolfe estava a tentar fazer, para os anos 1980, uma coisa como a que tentei fazer aqui. E O Grande Gatsby também, porque é um romance sobre reinvenção. O verdadeiro nome de Jay Gatsby não é Jay Gatsby e o verdadeiro nome de Nero Golden não é Nero Golden. Mas as razões para a reinvenção são diferentes. No caso de Gatsby, a motivação é o amor; ele quer tornar-se alguém de quem Daisy venha a gostar. Neste caso podemos dizer que a reinvenção tem mais a ver com medo do que com amor. Mas o tema da reinvenção está no coração de ambos. 

Mas há o narrador, uma primeira pessoa que observa.
Sim. Mas René não é de todo como Nick Carraway. Nick Carraway nunca se envolveria. Ele fica de fora e nunca cruza a fronteira, e René comete o erro de passar a fronteira e enrola-se gravemente nas vidas das pessoas que é suposto estar a observar para fazer o seu filme, acaba por se tornar parte do filme. Para mim, o interessante nele, e que levanta uma questão moral, é que ele ali está a julgar as vidas daquelas pessoas — que, pelo menos no caso do patriarca, se percebe não serem vidas muito éticas —, mas ao ultrapassar a linha o que ele faz não é também particularmente bom. Ou seja, também ele tem de se confrontar com a sua moral. Mas no fim do livro há uma coisa que é muito importante para mim: um perdão. O que o livro sugere é que apesar de tudo talvez algo do melhor da nossa natureza possa vir ao de cima. Quis que acabasse assim, confiantemente.  

Foi René, o aspirante a realizador, o argumentista, que lhe deu a forma deste romance, muitas vezes semelhante a um argumento de cinema? 
O engraçado é que a primeira vez que pensei em René tive a péssima ideia de achar que ele devia ser um escritor, um romancista, e comecei a escrever o livro dessa maneira. Acordava literalmente a meio da noite a pensar que era uma ideia terrível.

Porquê?
Pôr escritores a escreverem sobre escritores é patético; ele devia ser qualquer coisa, dentista, tudo seria melhor do que escritor. Mas se ele não fosse escritor o que seria? Conheci um grupo de jovens realizadores, alguns deles saídos da NYU Film School, como ele saiu; pessoas a tentarem começar as suas carreiras na Baixa de Nova Iorque como realizadores, produtores e argumentistas. Talvez ele fosse um deles. No momento em que ele foi isso, o livro arrancou, ele mostrou-me como escrevê-lo, e permitiu-me fazer estes jogos.

Com ele revela as hesitações de um criador, de um guionista, que não são muito diferentes das hesitações, das angústias e das revelações de um escritor: no fundo, este também é um romance sobre como escrever um romance.
É mesmo. Ele deu-me um modo de o fazer, desviando-me, porque ele está a falar de um filme. Sempre fui viciado em cinema. Quando se é de Bombaim, isso é inevitável: os filmes estão por todo o lado, sempre prontos a consumir. Um jornal de Bombaim tem para aí quatro páginas de notícias e depois umas 24 sobre estrelas de Bollywood, porque é isso que toda a gente quer. Cresce-se num mundo obcecado por filmes e depois essa obsessão transfere-se (em mim, pelo menos) para o cinema europeu e por aí fora. Quando estava na universidade, no período entre o final dos anos 50 e o início de 60 que agora é visto como a idade de ouro do cinema, com a Nouvelle Vague francesa, a “nova vaga” italiana, parecia haver grandes realizadores em todo o lado. Kurosawa, Bergman, Milos Forman... parte da minha educação fez-se mais nas salas de cinema do que nas bibliotecas. Havia uma sala de cinema em Cambridge que já não existe, The Art Cinema, que passava todos esses filmes e onde eu ia três a quatro vezes por semana. Íamos ao cinema e lá estava o Masculino, Feminino, do Godard, ou O Anjo Exterminador, do Buñuel, e na semana a seguir O Sétimo Selo, de Bergman, e na outra Os Sete Samurais, de Kurosawa, e depois o 8 1/2,  do Fellini, e O Deserto Vermelho, do Antonioni... Estes filmes saíam uma semana depois da outra, era muito estimulante e formador; fez-me pensar em criatividade de uma forma cinemática...

Que contaminou a sua escrita.
Uma das coisas que aprendi enquanto escritor é que as coisas que agradam às pessoas que gostam dos meus livros são as mesmas que não agradam às pessoas que não gostam dos meus livros. As pessoas que gostam dos meus livros dizem que são muito visuais e muito cinematográficos, e as pessoas que não gostam dos meus livros acham que são muito visuais e muito cinematográficos. É verdade, são, porque essa é uma parte importante da minha formação enquanto escritor, e nunca pude usá-la de outra forma, directamente. Nunca escrevi sobre cinema em ficção. Portanto havia tudo isso que nunca usara antes e que agora, graças a René, pude permitir que viesse. 

Vê este livro adaptado ao cinema?
Espero que sim. Vamos ver. Há interesse. Há agora este novo formato, as séries de televisão, que também me agrada. 

Tem-se confessado um admirador desse formato.
O que tem de bom é que nos dá tempo, em particular quando se fala da adaptação de um romance. Qualquer coisa como cem minutos é um problema, porque é preciso condensar muito. Quando escrevi o argumento do filme Os Filhos da Meia-Noite [2012] houve tanta coisa que teve de ser deixada de fora... No fim, acho eu, o filme saiu bem, mas houve perdas inevitáveis por não poder ter mais de duas horas. De repente, se se puder ter dez horas, ou talvez duas temporadas, talvez se consiga escrever como um romance, com o grau de complexidade narrativa de um romance, com personagens que se desenvolvem ao longo do tempo. Tudo isso pode ser muito rico.

Penso que o melhor destas novas series é serem romanescas nesse sentido, mas também o facto de permitirem que o escritor seja o principal criador; no cinema isso não é assim. Os Sopranos era de David Chase, e Mad Men era de Matthew Weiner. São criações dos seus escritores. Resumindo, e em relação a A Casa Golden, há interesse numa adaptação, mas aprendi que no cinema nada é real até o dinheiro estar na nossa conta.

Este livro toca temas muito actuais na agenda americana: raça, clima, género, identidade. É também o primeiro livro que escreve enquanto cidadão americano...
Sim. 

Sente-se mais legitimado para falar destes temas numa perspectiva americana?
Sim, no sentido em que há uma crítica legítima que as pessoas podem fazer sobre alguém de fora estar a falar sobre eles, do tipo: quem és tu?, cala-te, vai para casa, escreve sobre o teu país. Em especial num tempo tão mal-humorado quanto este, em que as divisões são tão profundas e as paixões tão exacerbadas que se um outsider chegar e disser “é assim que vocês são” isso pode levar a uma reacção negativa. Agora também sou um cidadão, também tenho direito a manifestar-me, e esse argumento deixa de ter valor. Alguns dos outros temas deste livro, como o síndrome de Asperger e, claro, o da identidade de género, também são tão acesos (como é que a linguagem responde à doença mental?, como é que se responde à confusão de género?) que estou realmente surpreendido por não ter sido alvo de nenhum ataque. E se não aconteceu é porque já não deverá acontecer. 

Porque diz isso?
Em cada um desses dois casos, criei as personagens com conhecimento das situações, ou seja, a partir de pessoas que conheço. Conheço desde que é criança um jovem que tem síndrome de Asperger bastante profundo e vi como ele a a família tiveram de lidar com isso, por isso senti essa ligação pessoal com a história. E também conheço duas pessoas, uma muito chegada e outra não tanto, que fizeram a mudança de género, cada um numa direcção diferente; os dois casos, até agora, foram bem sucedidos, no sentido em que são pessoas muito mais felizes agora. No caso que conheço da transição de feminino para masculino, o interessante é que quando ele era rapariga era claramente lésbica e tinha uma namorada, e agora que é um homem tem a mesma namorada, com a qual casou. Isto em diz que o amor é mais forte do que o género. Se realmente amamos uma pessoa, amamo-la seja qual for o modo em que ela se manifeste. Isso foi muito formador para mim. Sim, este é um assunto importante, mas há coisas na natureza humana que são maiores do que isto. E o amor é uma dessas coisas.

Comecei de uma posição de ligação pessoal, mas uma das coisas interessantes de estar numa escola de jornalismo é que houve sempre um aspecto do romance que esteve relacionado com a reportagem, e que é o de ir descobrir coisas, não nos ficarmos apenas pela nossa pequena esfera de conhecimento. Muitas vezes temos de ir descobrir coisas, investigar, o que significa sair do nosso pequeno quarto e ir a sítios onde normalmente não vamos para perguntar coisas às pessoas e descobrir coisas. Claro que no que se refere a questão de género esta é a cidade ideal para isso. Descobri que foi muito fácil escrever sobre isto fazendo juízos de valor, mas eu não queria fazê-lo: vou simplesmente dizer aqui está isto e cada um dirá o que pensa. Há umas pessoas que se chamam de TERF [Trans-Exclusionary Radical Feminists], pessoas da primeira geração de feministas que se tornaram lésbicas porque não queriam estar envolvidas com homens ou órgãos sexuais masculinos, e pessoas que se identificam como sendo do sexo feminino, mesmo não tendo terminado a sua cirurgia de transformação e mantendo órgãos genitais masculinos, e que insistem que a sua biologia não é o que determina o género. As lésbicas feministas dessa primeira geração do feminismo não gostam disso e há uma tensão nesse mundo que eu quero apenas mostrar, porque não gosto de livros que me digam como pensar, pelo menos na ficção. Na não-ficção podem fazê-lo. Na ficção é muito importante deixar espaço para o leitor. O que quero enquanto leitor é que me levem para um mundo e me deixem pensar sobre ele; deixem-me decidir o que pensar de Anna Karénina; gosto ou não gosto de Madame Bovary? Não quero que haja um ditador a ditar-me o que pensar. Não disse a ninguém o que pensar e talvez tenha sido por isso que o romance não gerou a tal hostilidade.

Ao expor cada uma das situações, também expõe as limitações da linguagem...
Sim, é preciso aprender a linguagem para essas situações. 

Para nomear?
Há modos de nomear muito diferentes em cada um desses temas, e são temas linguísticos complicados: há uma universidade na América que pede, quando se preenche a candidatura, para se especificar o pronome pelo qual se quer ser conhecido, “ele” ou “ela”. Atingimos esse nível! Tenho uma visão pessoal sobre o ridículo que isso é, mas na verdade não interessa qual é a minha visão pessoal. O que importa é mostrar a evolução da coisa. 

Uma das suas personagens diz que quando expurgamos demasiado a linguagem acabamos por matá-la. É essa sua visão pessaoal?
É. A censura socialmente motivada pode parecer muito virtuosa a quem a faz em nome de alguma coisa também potencialmente virtuosa, mas o efeito pode ser muito limitador. Por exemplo: Os Monólogos da Vagina. Todos os anos se fazia num determinado lugar uma leitura pública desse texto; a certa altura, essa leitura foi cancelada por causa de protestos que diziam que a peça era discriminatória. Ao definir as mulheres como pessoas com vaginas, discriminava as mulheres que não tinham vaginas. Apetece dizer: chega! 

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