Leonor e a arte como resistência para “salvar” o Porto

“Encardido” foi o nome da exposição temporária que criou para apresentar a sua tese de mestrado, concluída há dias com 20 valores. É sobre o Porto mais sujo, o que não se vê ou não se quer ver. Maria Leonor Figueiredo usa a arte para fazer pensar sobre a sua cidade. Com cinismo e ironia

Foto
Nelson Garrido

Quando a câmara de filmar de Maria Leonor Figueiredo avariou e ela a levou a uma loja para reparar, a resposta veio pronta: “Não compensa, mais vale ir para o lixo.” A frase soou-lhe familiar. Já a tinha ouvido por aí — em situações similares ou nem por isso. “Vivemos numa lógica em que tudo tem de compensar: as relações, os trabalhos, os passatempos. Como se tivéssemos de sacar sempre algo de tudo.” E isso, diz, “é exactamente o que a arte não é”. A conversa com o P3 corre na pequena sala onde Leonor montou há dias uma exposição que foi também a base para a defesa da sua tese de mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas, concluída com 20 valores. É sobre arte — e resistência. Sobre cidades, e o que a arte pode fazer por elas.

Andava ainda na alcofa e já ia a exposições com o pai, profissional nestas andanças. Daí a querer imitá-lo foi um passo — e, sem dar conta, o bichinho da arte ia-se instalando. Mas não foi por aí que Leonor começou. No ensino secundário, destacava-se no português, fazia redacções lidas em voz alta pelos professores. A dada altura apaixonou-se por política, depois por sociologia. “Não sabia bem o que queria”, graceja ao recordar a menina de 18 anos, que parece já um passado longínquo, ainda que tenha apenas 26 agora. Escolheu uma licenciatura em Estudos Portugueses e Lusófonos, completou-a logo de seguida com um mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes (centrado em poesia portuguesa e resistência).

E novamente a dúvida instalada. Fez Erasmus +, na Fundação BilbaoArte, mas não sabia por onde ir depois. Candidatou-se à Fundação Ciência e Tecnlogia para fazer um doutoramento na área de Literatura, não conseguiu bolsa. “Ainda bem, hoje em dia acho um disparate sair de um mestrado e ir logo fazer doutoramento”, diz. “Estava desesperada, é aquele tique de jovem adulto que não sabe o que fazer mas quer fazer coisas.”

Foto
Nelson Garrido

Aí se deu o encontro com a arte: “Sabia que queria criar, ir para um lado mais prático”, explica, para justificar a inscrição num segundo mestrado. Afinal, perguntamos como quem põe os pontos nos is, o que é isso da arte? Leonor Figueiredo sorri com a pergunta impossível. “As teorias nunca se esgotam. A arte é uma coisa em constante mutação”, vai dizendo. Se a arte é só gira então é apenas decoração. Se é feita para compensar financeiramente, então não é arte. Se não introduz novas vírgulas do mundo, também não é arte. “É uma finalidade sem fim.”

“Os meus amigos dizem que penso demasiado nas coisas”, anota sorrindo. “Às vezes têm razão, mas a falta de humanidade perturba-me”. Leonor Figueiredo não esquece o lado social naquilo que faz, o lado político. “Porque a arte é um modo de resistência”, primeiro, “e é sempre política” mesmo quando as pessoas têm “medo” de o assumir.

Foto
Nelson Garrido

Encardido: um retrato do Porto

Tudo começou como uma curta-metragem. Algo perdida no seu projecto de tese de mestrado, Leonor pensou em retratar a cidade onde nasceu e vive num pequeno filme. Mas esbarrou na técnica. “Dizia ao meu orientador que não sabia filmar e ele respondia-me: ‘mas não sabes como? não sabes apontar a câmara?’. Tinha esse auto-estigma de não saber fazer como no cinema”, conta.

Ultrapassou-o. Filmou o Porto, cumpriu a ideia da curta-metragem (que será divulgada em breve), fez fotografia, escreveu, fez colagens. “Mostro o lado mais sujo da cidade, o que não interessa, não se vê ou não se quer ver, o que não importa olhar”, explica. Ou para onde se olha apenas por ser moda, “como as ilhas, que agora até importam mas por serem engraçadas, excêntricas, portuguesas”.

O Porto “está a perder identidade”, denuncia: “Os meus amigos estão a ser expulsos da cidade para a periferia, estabelecimentos que são património, como a Adega do Olho, estão a fechar”. O problema, sublinha, é que “não estão a fechar por serem maus, mas porque alguém decidiu que não compensava”. E acrescenta em tom de lamento: “E há coisas que são irreversíveis, há perdas que não se recuperam”. Pôr as pessoas “a pensar sobre isto” — ou pelo menos “ironizar” sobre o assunto — pode ser, sim, uma função da arte.

Foto
Nelson Garrido

Leonor Figueiredo define-se como “cínica e lírica” naquilo que cria. Assim se explica o trabalho exposto numa das paredes da loja da Rua Oliveira Monteiro onde improvisou uma exposição temporária entretanto fechada (mas que poderá regressar a outras geografias da cidade noutros momentos). “Estudo da Deco: Porto é onde mais compensa comparar preços no supermercado”, “Estudo revela que tirar curso superior compensa”, “Corrida à Black Friday não foi louca porque nem tudo compensa pagar”, “Ser simpático no trabalho não compensa (sobretudo para as mulheres)”, “Ir ao Web Summit compensa? Start-ups mostram que sim e repetem ‘dose’. Mas nem todas.”

As frases são títulos de notícias recolhidos numa rápida pesquisa no Google: “Bastou pôr a palavra ‘compensa’ e ver o que dava.” É a prova da tendência que identificou quando a sua câmara de filmar se estragou, quando o espelho retrovisor do carro da mãe deixou de servir.

Na montra da loja, uma frase que “mostra o movimento cíclico do capitalismo, as voltas que o capitalismo dá” (From black Tuesday to black Friday to black Tuesday again), latas de sardinha (porque estão na moda) com um poema em quatro estrofes a partir de um lema que lhe põe os nervos em franja, o “less is more” (Jess is sure, Hence is whore, Sex is porn, Mess is core), ao lado três “esculturas” que são, na verdade, plástico retorcido (“o meu sonho era que um turista entrasse aqui e me desse 200 euros por isto”, sorri).

Spot Parasitário from Maria Leonor Figueiredo on Vimeo.

A arte, mostrou Leonor, é esta tentativa de “democratizar as linguagens abastardadas do sistema” e de “encontrar novos significados para as palavras”. É a criação de “realidades espectrais”, explica: “Não o que é ou o que foi, mas o que pode ser. Uma ferramenta do pensamento.”

Com o mestrado concluído com nota máxima, Leonor Figueiredo está agora “mais motivada” para continuar a criar. Mas não pensa viver disto, nem que vá trabalhar para uma loja de roupa, como já fez anteriormente. “Não quero viver da arte porque não quero depender dela”, sentencia, acrescentando que talvez se dedique à área da produção, na qual fez algumas experiências nos últimos tempos. Mas a arte, compensa? “Sei que isto não vai fazer mossa ao sistema”, começa, “mas é óbvio que a arte compensa — não pelas lógicas neoliberais de hoje, mas compensa.”

Sugerir correcção
Comentar