A grafia dos dias: Margaret

Porque não posso morrer naturalmente? Estar na minha casa e morrer. Simplesmente

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Sónia Nisa

A gravidade aloja-se-lhe nos pés. Atrai a massa do corpo. Movimentos descendentes travados nas solas dos pés. Inchados. Pesados. Disformes. Inamovíveis. Margaret arrasta-se na inconstância dessa massa. Equilíbrio precário. Líquido. Um tubo perfura-lhe as costas. Desenha-lhe uma linha até ao joelho. Sinuosa e amarela. Desagua num saco. Rectangular. Morno. Cingido à perna por cintas. Estrangulam-lhe os músculos. Impõem-se pelo inchaço. Constroem declives. Montanhas. Paisagens quentes e vermelhas.

 

Da boca efervescem questões:

- Porque não posso morrer naturalmente? Estar na minha casa e morrer. Simplesmente.

 

Acendem-se-lhe angústias. Em mim, queimam-me dúvidas. A casa, dispositivo retardador. Mantém-nos vivos. Abrem os olhos, respiram e tossem freneticamente na apatia dos salões. Submersos na rotina diária. Repetitiva. Odiada. Institucionalizados pelo dever de cuidar. A modernidade a negar o inevitável.

 

Certo dia. Empalidece. Petrifica sentada na sanita. Inerte. Branca.

 

Braços mecânicos resgatam-na. Depositam-na num leito de flores estampadas. Olha-me:

- Estou a morrer.

 

Os olhos reavivam-se-lhe. Desenham círculos. Frios. Distantes. Evapora-se em minutos.

 

Deixa-nos sem conselhos ou procedimentos viáveis. De auscultador em punho reclamando médicos e ambulâncias.

- Perdemo-la. – Interrompemos do outro lado da linha a catadupa de questões. Margaret escapa à ferocidade dos cuidados paramédicos. Morre simplesmente ao princípio de noite.  

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