Calar pessoas com rabanadas

Para muitos, o espírito de Natal é, também, este: jantar com pessoas com que não se partilha mais do que um nome e uma origem comum. O truque poderá passar por enfardar pessoas que tendam a dizer coisas desagradáveis

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Podem tentar explicar-nos a origem das comidas e dos doces natalícios. É tudo treta. Ninguém o assume, mas estas guloseimas foram criadas para calar as pessoas, na ceia de Natal.

Isto da diplomacia é bonito, sim senhor, tentar que os israelitas se entendam com os palestinianos, que o Trump se entenda com quem quer que seja, ou que, nos tempos conturbados que o futebol português vive, pessoas menos capazes da intelectualidade e do civismo se entendam com pessoas menos capazes da intelectualidade e do civismo adeptas de clubes rivais. Mas nada supera ter que jantar com um tio que é como um penedo.

Importa salientar, até porque não quero que este seja o meu último Natal em família, que esta crónica não é, definitivamente, sobre os meus familiares. Esta crónica é sobre as pessoas, em geral, que temos o azar de encontrar o ano todo, principalmente nas redes sociais ou nos fóruns da televisão. Pessoas que fazem declarações do tipo “Eu sou pela paz, mas não gosto dos pretos”.

Ora, deduzo que estas pessoas terão familiares. Familiares esses que terão que jantar com as pessoas anteriormente referidas e ouvir este tipo de tiradas. E, em vez de dizer “oh tio, a existência de pessoas como o senhor é um entrave ao progresso da nossa espécie”, os familiares acabam por dizer “oh tio, prove uma rabanada, que este ano estão bem boas”. Simples, calam-se as pessoas com comida. É, também, este o espírito do Natal: dar comida a um mamífero agressivo que, por sinal, é nosso tio.

Toda a gente conhece uma nova espécie de cidadãos, a que chamo carinhosamente de “trumpinhos”, que são aqueles que acham que a alimária que preside aos Estados Unidos da América até “é um gajo que, sim senhor”. E que “o Hitler até nem foi assim tão mau”. Ora, um familiar de um “trumpinho” pode perder a cabeça e dizer-lhe duas ou três coisas desagradáveis, daquelas capazes de acabar, não só, com a ceia de Natal, como com a possibilidade de voltar a ser convidado para uma ceia de Natal, enquanto lhe marca uma viagem a Auschwitz, para ver como aquilo é. Ou pode, em alternativa, e para evitar chatices, perguntar-lhe se quer mais um bocadinho de aletria, que “este ano está bem boa”.

Existem também os polícias dos costumes. São pessoas que não aceitam que um ser humano possa ter uma vida que não seja exactamente igual à sua. E, como nasceram com o dom de saber o que está certo, passam a vida a prescrever a receita para a felicidade. Mesmo que estas pessoas tenham uma conduta duvidosa e um passado de nódoas, não te inquietes: elas nasceram com o dom de saber e a sua missão é transmitir esse saber.

Por isso, ouve caladinho/a opiniões como “não és ninguém se não casares e não tiveres filhos” ou “acho mal não ires à missa, o meu Manuel é bêbado e bate na mulher, mas não perde uma missinha, todos os domingos”. E oferece um bocado de pão-de-ló, no fim, como sinal de paz.

Para muitos, o espírito de Natal é, também, este: jantar com pessoas com que não se partilha mais do que um nome e uma origem comum. O truque, embora eu nunca o tenha testado, poderá passar por enfardar pessoas que tendam a dizer coisas desagradáveis, para que elas não as consigam dizer, a não ser quando tiveres o carro a trabalhar, para regressar a casa.

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