Num dia normal, tudo é possível… no Curdistão

Solidarizamo-nos pouco com o povo curdo e temos uma razão válida: aquilo não dá para perceber. Mas esta desculpa está a desaparecer

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Amir Cohen/Reuters

Um dia acordas e o teu líder político está preso. Noutro dia, acordas e o Estado Islâmico está à tua porta. Num outro dia acordas e é declarada a independência. Logo tens um exército à tua porta, que, dependendo do teu bairro, será turco, sírio ou iraquiano. A tua tia vive numa zona auto-gerida com base no federalismo democrático; o teu pai já fugiu para a Europa; tu vives num campo de refugiados; e o teu tio celebra hoje a libertação da vossa aldeia do Estado Islâmico.

Quem tenta seguir os desenvolvimentos no Curdistão sabe que aquilo é mil vezes mais difícil de entender do que o Game of Thrones.

O povo curdo, dividido entre (pelo menos) quatro países, vive no meio de conflitos imperialistas, ou fundamentalistas, ou nacionalistas, ou todos ao mesmo tempo. Nos últimos cinco anos, os curdos mostraram ao mundo inteiro que tudo é possível, para o bem e para o mal.

Síria: no meio de uma crise social e política alimentada por uma crise climática, surgiu, em 2013, a região autónoma de Rojava, na Síria, onde o movimento curdo proclamou a soberania popular. Em 2014, a luta já não era contra os islamistas do Exército Livre Sírio, mas sim contra os neo-islamistas do Estado Islâmico (EI). Nessa altura, o EI já controlava mais território do que o Reino Unido inteiro. Os curdos sobreviveram ao cerco de Kobanî (Novembro 2014) e, desde aí, o EI tem estado a recuar.

Iraque: entretanto, Mossul, a terceira maior cidade do Iraque, foi invadida pelo EI e os islamistas avançavam já para a região autónoma de Curdistão iraquiano. Em Junho de 2014, o Estado Islâmico proclamou califado. O que passou bastante despercebido na Europa porque o conceito não existe no cristianismo. Para os seus seguidores, o califado delimita e define o Islão. São uma e a mesma coisa: ou aderes ao califado, ou não és muçulmano. E se não és muçulmano, tornas-te objecto de conquista pela jihad. Três anos depois da proclamação do califado, chegámos ao referendo sobre a independência do Curdistão iraquiano em Setembro de 2017. Logo em Outubro, o exército iraquiano entrou nas áreas em disputa controladas pelas forças curdas, reincorporando-as na administração federal. E Barzani, presidente do recém-independente Curdistão iraquiano, demitiu-se.

Depois há a Turquia. Mais um filme a correr paralelamente aos outros. Um filme de acção, terror, drama — e comédia, se contarmos com o presidente turco. O HDP (Partido Democrático dos Povos) conseguiu derrotar a maioria do AKP nas legislativas de Junho de 2015. Erdogan não gostou destes resultados e lançou uma guerra civil, para depois repetir as eleições em Novembro. Depois do “sucesso” de Erdogan em Novembro de 2015, muitos líderes do HDP foram presos (e continuam na prisão). No final de 2016, nos congressos dos partidos que constituem o HDP, tinha-se já tornado costumeiro eleger mais pessoas de substituição do que postos existentes. Por exemplo, nove pessoas seriam eleitas para uma direcção, mais 18 suplentes, por se adivinhar que até ao congresso seguinte, em dois anos, toda a direcção seria detida ou presa ou forçada a tornar-se clandestina… Por duas vezes.

Guerra civil. Revolução. Ocupação. Bombardeamentos pela Rússia, pelos EUA, pela Turquia, e muitos outros. Auto-gestão. Califado. Cerco. Refugiados. Reconstrução. Vitórias eleitorais. Prisão. Estado de emergência. Tudo isto pelo meio de tudo o resto que acontece no Médio Oriente. Tudo é possível onde os curdos vivem.

Solidarizamo-nos pouco com o povo curdo e temos uma razão válida: aquilo não dá para perceber.

Mas esta desculpa está a desaparecer. Uma nova associação cultural curda e portuguesa, Jîyan, nasceu em Lisboa. Estão a organizar um festival de cinema e artes curdas em Março de 2018. Já esta semana, nos dias 7 e 8 de Novembro, em Lisboa, irão estrear-se dois filmes curdos (Reseba — The Dark Wind e The Song of My Mother), um concerto e um debate sobre a experiência de fazer arte e filmes em zonas de guerra, com presença de alguns dos realizadores e produtores.

Boas oportunidades para começar a conhecer esta luta e este povo inspiradores e começar a fazer o salto de imaginação para desafiar os limites do que é possível dentro da nossa normalidade.

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