Triste sociedade apática em que vivemos

O terrorismo, os conflitos, os migrantes, os refugiados e todas essas “coisas” lá longe afligem-nos muito. Afligem-nos naqueles cinco minutos do telejornal e nos primeiros parágrafos das notícias que lemos. Depois continuamos a nossa vida, apáticos

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Ethan Hoover/Unsplash

Lisboa. Estação de São Sebastião, linha vermelha do metro. Entro e instalo-me num daqueles bancos revestidos nesse material tão natural, tão nobre e tão nacional que é a cortiça. Depois de um dia louco quero aproveitar os 15 minutos seguintes para ler e responder a alguns emails. Concentro-me no ecrã do telemóvel.

Estação do Saldanha. Um mar de gente inunda a carruagem. Além de pessoas, vejo lancheiras, mochilas, sacos de compras, pranchas de body board, skates e trolleys de viagem. Se antes estava com a vista desafogada, agora só deslumbro cabeças, braços e pessoas encavalitadas umas nas outras. Como diria a minha tia Ana Maria: "Parecem sardinhas em lata". Mantenho o foco nos emails e na tomada de pequenas decisões.

Porém, quando soa o alarme de fecho de portas, pressinto uma certa confusão. As portas não fecham e as pessoas movimentam os corpos de forma incomodada. A linguagem corporal transparece alguma aflição. O alarme volta a soar. Pelo som, percebo que se passa algo com alguém de muletas, mas não vejo nada. Tenho uma parede de corpos e cores à minha frente. À segunda tentativa, as portas fecham e o comboio segue viagem.

É entre o Saldanha e a Alameda que começam os gritos. Percebo, de imediato, que o senhor das canadianas está alterado. Grita alto, bem alto. Rouco, áspero, rude, de forma acusatória e em duas línguas. Refila em português e em inglês! Um calão bilingue perfeito. Reclama que o deveriam ter ajudado a entrar na carruagem e direcciona os insultos para alguém específico. Não poupa injúrias a esse alguém.

Continuo sem ver ninguém em concreto, sem perceber ao certo o que se passa. Na minha mente as alegorias são livres. No entanto, os breves sinais que capto são claros. Estamos perante uma pessoa com alguma razão, mas com uma postura um tanto ou quanto extremada. As muletas devem ser apenas parte do problema, que é com certeza mais complexo. A linguagem corporal dos passageiros, que continuam sardinhas em lata, mantém-se aflitiva e incomodada.

Estação da Alameda. O senhor das canadianas precisa de sair, mas não está perto das portas. Quem frequenta o metro em Lisboa em horas de ponta sabe que, às vezes, esta é uma tarefa difícil. Nem quero imaginar esta tarefa de muletas. Em catadupa, oiço o alarme de fecho de portas, o estrondo de um grande trambolhão — alguém se estatelou no chão — e um angustiante "aaahhhhhh". O comboio arranca como se nada tivesse acabado de acontecer. Os passageiros surpreendidos movem a cabeça em direcção à janela, na tentativa de olhar para trás. Nos seus corpos leio repulsa.

Bolas! O senhor das canadianas caiu ao sair da carruagem, penso. Nisto, oiço a gargalhada de um casal. Continuamos sardinhas em lata e não consigo ver nada, mas pelo som percebo que são jovens, demasiadamente jovens. Como é possível achar piada à situação, volto a pensar. No silêncio incrédulo da carruagem, as gargalhadas continuam. São gargalhadas cavernosas, de prazer, de quem acaba de proporcionar mal-estar. Estas duas pessoas, ou apenas uma delas, empurraram o senhor das canadianas… E estão a usufruir do momento.

Triste sociedade apática em que vivemos. Mantenho-me fixa no ecrã do telemóvel, mas louca com o que não tinha acabado de presenciar, mas de pressentir. Um assalto ao civismo. Eis que se levanta um jovem. Calça bege, camisa azul de manga comprida e penteado impecável. Com pleno controlo das suas emoções, determinado a chamar o jovem casal à razão, avança com muito esforço pelo mar de gente da carruagem. Numa postura aberta e construtiva pergunta: “Viste o que fizeste? Achas que isso se faz? Tu não sabes o que é cidadania?” Obviamente que o receptor nunca deveria ter ouvido semelhante palavra, quanto mais compreender o conceito. “Ele foi mal-educado para mim”, responde num misto de vergonha e convencimento de razão. “Não conseguiste perceber que era uma pessoa perturbada? Bastava ouvi-lo para perceber que tinha problemas! Em vez de fazer o que fizeste deverias ter procurado ajudar. Isso sim é a entreajuda que precisamos todos.” Entreajuda, penso, outro conceito tão difícil para alguns.

Estação das Olaias. O jovem casal abandona o comboio. A cortina de pessoas mantém-se e não consigo vê-los. Nem a eles nem ao jovem pacificador que foi o meu herói daquele dia. A linguagem corporal dos passageiros está agora mais descontraída. Passou-se tudo há cinco minutos, mas já está tudo bem. Um mar de gente e apenas uma pessoa se levanta em defesa do outro.

Triste sociedade apática em que vivemos e que fomentamos. O terrorismo, os conflitos, os migrantes, os refugiados e todas essas “coisas” lá longe afligem-nos muito. Afligem-nos naqueles cinco minutos do telejornal e nos primeiros parágrafos das notícias que lemos. Depois continuamos a nossa vida, apáticos. Raramente temos coragem de nos levantar pelo outro. Chega de sociedades apáticas! Chega de inépcia emocional! Chega de fingir que não sabemos o que é civismo, cidadania, entreajuda e compaixão. Espero, sinceramente, que o próximo Orçamento do Estado contemple uma abordagem séria a estes conceitos nas escolas, com as crianças e os jovens. Se as famílias, eventualmente, se demitem deste papel, só nos resta a educação escolar. Pais, famílias, professores e educadores, uni-vos. Por um país melhor nas próximas décadas.

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