Tamagotchi: um ovo virtual de emoções

Nos anos 90, aquilo parecia-nos uma maravilha da tecnologia. Parecia real. Era realmente impossível não criar laços de afectividade

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Reuters

Em 1996, o mundo foi invadido por Tamagotchi. Para alguns foi uma praga, para outros uma verdadeira paixão. O Tamagotchi nasceu no Japão, do ninho da Bandai. Portugal tinha óbvias diferenças que nos afastavam da cultura nipónica, apesar de termos sido os primeiros europeus a desembarcar no arquipélago do Sol Nascente. As nossas duas culturas ficavam, literalmente, a meio mundo de distância, mas nem isso nos tornava estanques às influencias japonesas. Tendo passado 20 anos desde a eclosão dos Tamagotchis, eles ainda continuam vivos na nossa memória. Nos finais dos anos 90 dificilmente alguém lhes ficou indiferente. Quem não tinha um conhecia quem tivesse. Quer gostássemos muito ou não, todos acabámos por brincar com aquele bicho.

O nome Tamagotchi resulta da junção das palavras japonesas “ovo” e “amigo”. A Bandai queria dar às crianças japonesas uma alternativa aos animais, para aqueles que não tinham espaço nem tempo para um bicho a sério. Consta que se venderam perto de 100 milhões de Tamagotchis por todo o mundo. Foi um sucesso global.

A verdade é que aquela máquina era fofinha. O aparelho parecia-se realmente com um ovo. Surgiram constantemente novos modelos, com novas formas e cores. A Bandai e as suas imitadoras responderam assim aos impulsos da mundialização da sociedade consumista individualista. Tinha de haver um Tamagotchi para cada gosto e feitio. O bicho propriamente dito, que era exibido no ecrã digital, limitava-se a uns contornos de grandes pixéis monocromáticos. Mesmo não sendo minimamente realista, parecia ter vida real pois era interactivo, respondendo aos estímulos e ao modo como dele tratávamos. Nos anos 90, aquilo parecia-nos uma maravilha da tecnologia. Parecia real. Era realmente impossível não criar laços de afectividade. A maquineta, através daquele ecrã de baixíssima resolução, conseguia simular um animal de estimação do qual tínhamos de cuidar de forma equilibrada. No limite, o bicho podia morrer se não lhe garantíssemos as necessidades básicas. Mesmo com algum cuidado havia que o alimentar de forma saudável, garantir que aprendia, dar festinhas e mimos. Importava a felicidade do nosso amigo virtual, sem isso não se desenvolvia. No fundo, isso também nos fazia felizes. Mas havia um lado negro. Não me lembro daquilo passar a ser demasiado sério, mas recordo-me de que havia também quem o matasse propositadamente. Seria o Tamagotchi um escape psicológico para onde canalizávamos o pior de nós, a violência e os maus tratos sem que existissem consequências reais?

Hoje, passados 20 anos, o Tamagotchi foi relançado. Veremos como irá reagir o mercado a este produto reinventado. Será que temos espaço para ele na nossa vida, em que cada um de nós procura a felicidade à sua maneira, em moldes cada vez mais individualistas, mas que permitem novas formas de liberdade? Será o Tamagotchi demasiado rígido e formatado para os nossos tempos ou será uma forma de voltar a recriar aquelas emoções, evitando as chatices reais de ter uma animal de estimação a sério? Tendo em conta que gostamos do imediato, de poder ligar e desligar consoante o nosso interesse, de sermos nós a escolher e configurar, não consigo deixar de pensar se o Tamagotchi terá nascido, ou não, cedo demais. Terá a Bandai sido demasiado visionária ou apenas contribuído com um passo para um futuro inevitável de virtualização dos afectos? Parece-me que o Tamagotchi nasceu como um produto da pós-modernidade, continuamente aprofundada neste século, mas que habitava num ovo tecnológico do século passado.

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