Adultério e culpa: visão relativista

Das duas, uma: ou o juiz se formou no tempo da Maria Cachucha, com manuais da biblioteca do Convento de Mafra, tendo esquecido as vestes do século XXI, ou então houve ali um curto-circuito moral

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Andrew Neel/Unsplash

Desculpem lá o meu exercício de desculpabilização, é o meu ego demandando, os tais juízes que desculpabilizaram os agressores da adúltera não procederam mal, eles apenas se enganaram no século, porque, no tempo de A Letra Escarlate (Hawthorne; no da narrativa e no da edição), era a mulher que ficava com a mácula do adultério, a norma era sová-la, e ia tudo muito bem, assim pensaria a maioria, agora, a mácula é maior para o homem que violenta, e a ilibação moral vai para a mulher encornadora.

Olhem, quem já andou com uma mulher casada ponha a mão no ar, tão poucas mãos?, afinal de contas, ainda subsiste certa maculação adúltera, eu até pensava que era normal saltar a cerca de quando em quando, é que, sabem, a mulher adúltera é, geralmente, infeliz, e nem sempre o homem lhe bate porque ela traiu, até pode acontecer que a mulher traia porque o homem lhe batia, mas isto de culpar e desculpar tem de acabar, a mulher adúltera sofre porque leva a tareia, do homem e da sociedade; quanto ao homem que bate, não se prontifiquem a bater-lhe vós também, oh sociedade!, ele também é uma vítima, da sua frustração, das tareias que levou em tempo pretérito, e, quando a sociedade lhe coloca a "letra escarlate" simbólica, faz com que ele se sinta ainda mais frustrado, e a culpa gera nova tareia. Deve, então, a sociedade tolerar a violência doméstica? Ora, não se esqueçam que a culpa é útil, só através dela pode haver mudança, talvez o homem se lembre de ir ao psicanalista, e, aí, é o terapeuta que o desculpa, ou talvez renove a mácula, que isto das psicoterapias é conforme a culpa do próprio terapeuta. Homem reabilitado, deverá a sociedade perdoá-lo, ah não, que a sociedade não esquece, a mulher de A Letra Escarlate foi condenada a viver com a letra na roupa por longo tempo e, afastada da restante sociedade, traiu o marido ausente e o "outro" nem se acusava, a sociedade de agora também precisa de culpar alguém de modo perpétuo, sem culpa não há estrutura.

Daí a quererem punir os que pensam de modo diferente vai uma grande distância. A culpa não gosta da liberdade, mas isso é porque esta atira a culpa para outro lado e para cima de outros (a estrutura social decide o que pode ser "livremente" expresso para limitar uma futura estrutura que decida "livremente" proibir o conteúdo da primeira), a vida são ciclos e gerações de intimidação, de (des)culpabilização variável, virá o tempo da poligamia, e muitos dirão ser anormal a fidelidade, enfim, obviamente da moral à lei vai um passo, mas ainda é um passo, e o tal juiz não entendeu isso, que a sua tarefa é respeitar a lei, e que a sua moral pessoal deve ficar fora do Tribunal, portanto, das duas, uma, ou o juiz se formou no tempo da Maria Cachucha, com manuais da biblioteca do Convento de Mafra, tendo esquecido as vestes do século XXI, ou então houve ali um curto-circuito moral, claro, podem sempre vir com a conversa dos valores universais, mas universais há muitos, cada um toma os que quer, portanto, mais vale pensar na resultante da coisa.

Mas, ai, não tenho boas notícias. Não há modo de saber se o adultério é mais ou menos grave para o colectivo do que a violência doméstica. Não me batam, que essa vossa vontade de me bater é um preconceito moral, secular. Estamos condicionados para pensar que a violência doméstica é mais condenável do mesmo modo que os homens do tempo de Hawthorne estavam condicionados para pensar o contrário (e precisamente por isso, dói mais o cinto agora do que doía há uns séculos), e não me venham com a conversa da evolução, que essa é como a outra dos valores universais, todos pensam que o "bem" é "isto" ou "aquilo", todos querem prescrever princípios, mas, no fundo, ninguém sabe o que é, de facto, mais importante. No entanto, numa época em que se espera que as coisas sejam de um modo, é importante não fugir muito à regra, não vá o diabo tecê-las e fazer disto um perfeito caos anómico, e, assim, é expectável que a mulher agredida sofra e o seu sofrimento estende-se a muitos outros, mas também é expectável que o agressor sofra e o seu sofrimento também se estende a muitos outros — e de análoga maneira, se a lei compreende e "indulta" o sofrimento de um agressor deprimido, muito mais deve compreender o sofrimento da mulher violentada, porque, no contexto em causa, é esta a principal vítima (esta também pode ser uma vítima pretérita e cumulativa, eis que todos têm as suas razões, e também a sua culpa e anexa responsabilização, assim vai o mundo andando...); fazendo, assim, com que seja o agressor a vítima, o vermelho passa a azul e, à custa de querermos urdir tolerância, acabamos vitimando mais a mulher, mais ainda porque num contexto de aceitação legal do adultério, e esta vitimação acaba, claro, por infectar e se perpetuar, o que, de mais a mais, constitui somente um regressar ao passado, tão justo como qualquer outro tempo —, como também é expectável que o casamento não tenha continuidade possível, mantê-lo seria, decerto, pior do que abdicar dele, mas sei lá eu, estou a pendurar-me nos preconceitos da época, a modernidade é mais um "eu" do que um "nós", mas isto é mau?, nem mau nem bom, é o que é, olhem, daqui a uns anos falamos. Entretanto, portem-se bem. E entendam isto como vos aprouver.

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