Uma Ordem dos Fisioterapeutas aprovada: “Quo Vadis?”

Com a aprovação da Ordem dos Fisioterapeutas no Parlamento, inicia-se a vida adulta da profissão. Uma adultícia que mescla arte e ciência de um modo próprio em nome do cidadão, que é, sempre foi, ele o principal visado

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Adriano Miranda

Há muito que os fisioterapeutas têm vindo a reeducar a postura dos portugueses relativamente ao seu fundamento. Não, não se limitam a massajar as consciências, as representações, o toque é na alma, mas o caminho tem sido árduo. Tem durado a infância da fisioterapia portuguesa, mas, na passada sexta-feira, com a aprovação da Ordem dos Fisioterapeutas no Parlamento, inicia-se a vida adulta da profissão. Uma adultícia que mescla arte e ciência de um modo próprio em nome do cidadão, que é, sempre foi, ele o principal visado.

Perguntarão alguns: mais uma Ordem? Perguntam, também, alguns dos "técnicos de diagnóstico e terapêutica", cujo projecto de Ordem "dos Técnicos de Saúde" não foi aprovado: uma Ordem para eles e nós somos discriminados? Mas o esforço em prol da Ordem dos Fisioterapeutas dura há décadas, muitos não imaginam tudo o que já foi feito e contra que poderes institucionais foi preciso remar. E esse esforço foi sempre emergente, porque a Fisioterapia não pode ser eficientemente exercida se não subsistirem condições mínimas de autonomia, bem como princípios que podem e devem ser adoptados. E a Ordem clama pela sua existência porque a terceira profissão de saúde mais comum do nosso país vive condições extremas que ameaçam a sua estabilidade, as boas práticas ético-científicas.

Em tempos, fui contra esta Ordem. Porque, na minha perspectiva "egóica", as intenções corporativistas bravateiam a visão unitária que é devida ao paciente, ao seu corpo. Não pode este último deixar de abraçar um "ideal" de união entre as profissões de saúde (tal como um "ideal" de profissional "totalizador" necessariamente liberal), que, de resto, muitas vezes, possuem aspectos comuns de entendimento, mesmo ao nível da teoria e dos métodos. No entanto, a autonomia é uma etapa obrigatória para esse "uno", é preciso que a profissão viva um Verão de conciliação da teoria com a ciência para que possa alcançar o Outono do amadurecimento. A fase actual é aquela em que a ciência deve dirigir a voz do reconhecimento. Uma ciência prontificada a servir a profissão, ela mesma, como um "todo", feito das pontes já estabelecidas. E a Fisioterapia possui um "corpus" já fortíssimo, e suficientemente independente, ela já deu imensas provas de que está aprontada para tomar as suas próprias rédeas na resolução do sistema.

Obviamente, a plena re-solução em causa só pode ser conseguida se muitas problemáticas "parasitas" forem extirpadas. E uma delas envolve a forma como os profissionais podem e devem dirigir-se à sociedade civil que servem. Não é suposto a Ordem caracterizar o pleno paraíso da vivência dos profissionais que a integram, ela vai trazer responsabilidades, deveres, condições de materialização de um modelo que se pretende propositadamente diverso do "biomédico", exigindo uma visão orientada para o "ser" bio-psico-social. Assim, se tem de haver interesse corporativo, que ele seja o do "corpo" (do) paciente, aliás, do colectivo. E, ao invés de nos focarmos nas condições de distinção face às outras profissões, será uma mais-valia se pensarmos, essencialmente, nas condições de cooperação (o que não implica que, em nome da distinção do modelo, a moral não possa providenciar o clima de segurança académica, científica e profissional necessária ao bem comum). Não permitamos, jamais, que a Ordem se resuma a criar muros ou a patrocinar a caça às bruxas que alguns desejam. Também os outros, mesmo os mais impreparados, poderão ser eficientes ou fazer coisas semiologicamente semelháveis, prescrever-lhes "balizas" é uma forma de responsabilizar, de tomar a cargo a maior probabilidade de sucesso, não deve constituir um mote de represália. O dogma classista deve servir a verdade científica, não a organização dos interesses parcelares.

Talvez possa a futura Ordem dos Fisioterapeutas representar menos um órgão de poder discricionário e mais um exemplo, um paradigma, de entendimento do "humano". Porque, em suma, a saúde tem de ser compreendida num aparelhado que funde espírito, razão e empirismo, métodos hermenêuticos, nomotéticos e ciência pura, casuística e experimentalidade. O objecto "moral" dos fisioterapeutas pode ser, não uma solução de continuidade, mas uma continuidade na solução, um alvo que permita que outras profissões prossigam no seu intrínseco alvo de "ordenação". Os técnicos de saúde que hoje viram ser frustrada a sua Ordem devem, antes, perspectivar que a Ordem dos Fisioterapeutas será apenas a primeira de muitas outras. De facto, os fisioterapeutas revêem-se muito limitadamente numa suposta designação de "técnicos de diagnóstico e terapêutica", e nela não vislumbram o grande fundamento de evolução profissional. A ética autónoma não consente ainda tal tipo de conciliação, assim haveria mais desordem do que ordem.

A Ordem é a Estrutura e só esta pode propiciar o que vem depois: a liberdade. Talvez num tempo meta-humano, possa, finalmente, ser exaurida a necessidade de "ordenar", de "moralizar", proporcionando a plena liberdade de acção, a escolha perfeitamente redentora. Aí, sim, já não haverá Ordens ou morais, haverá "todo", e este será representado pelo "ser" perfectibilizado, onde todas as artes se fundem. O profissional liberal, assaz meta-moral, é o intérprete desta possibilidade vindoura, talvez seja ele, e o seu dogma, o que mais perde com a Ordem, tomara, portanto, que esta desempenhe o seu papel do melhor modo, que ela justifique (cientificamente, positivamente) a sua importância, evitando um caos potencial (que seria, bem vendo, o risco da liberalidade desabrida); lembram-se, decerto, que "o caos é uma ordem por decifrar".

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