Leandrinha Du Art: mulher, “trans”, a mudar o mundo sobre rodas

Tudo mudou quando um vídeo em que conta a sua história se tornou viral. A activista brasileira Leandrinha Du Art é uma transgénero com deficiência determinada em derrubar preconceitos

Tássio Lopes
Fotogaleria
Tássio Lopes
Tássio Lopes
Fotogaleria
Tássio Lopes
Tássio Lopes
Fotogaleria
Tássio Lopes

Tem apenas 22 anos, mas nada no seu discurso o transparece. Envelheceu depressa, diz. Teve de ser. Há três meses, um vídeo, que é uma lição de vida, catapultou Leandrinha Du Art para a fama. Nele, a “menina de cabelo colorido” apresenta-se: mulher, transgénero, a mudar o mundo sobre rodas. Nascida com Síndrome de Larsen, uma doença rara que afecta o desenvolvimento dos ossos, a brasileira, natural de Passos, Minas Gerais, quer inspirar o universo com a sua história, esperando ajudar as pessoas a aceitarem-se. Consegue-o.

Depois do vídeo viral, a sua vida mudou. Teve de deixar a presidência da Associação das Pessoas Portadoras de Deficiência de Passos para abraçar o activismo a nível nacional e, quiçá, mundial. Movem-na as causas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo) e dos portadores de diversidade funcional, não se cansando de derrubar preconceitos a partir de uma cadeira de rodas. É disso que fala nos debates onde marca presença, nas colunas que agora produz para o colectivo MÍDIA Ninja, nos vídeos que publica no Facebook. Pelo meio, também dá dicas de beleza e de sexualidade, sempre com muito humor. Estivemos uma hora ao telefone com o fenómeno Leandrinha Du Art e, avisamos já, soube a pouco.

Apresenta-se como “trans”, “cadeirante”, activista, fashionista, fotógrafa, make up artist, ícone de moda, youtuber, blogger. Tem tempo para ser isso tudo?

Foto
Tássio Lopes

Nossa, isso é motivo de muita risada entre os amigos (risos). Realmente é uma apresentação muito grande e sim, dá tempo. Quando se tem motivação para se fazer o que se gosta dá-se conta de tudo. Ainda pretendo ser mais coisas.

Foto
Tássio Lopes

 

Há um antes e depois na sua vida depois do vídeo “Quer-me conhecer melhor?”, que há três meses alcançou três mihões e meio de visualizações no Facebook. Estava à espera desse mediatismo?

Lógico que não (risos). Fiquei muito feliz porque acredito que é uma conquista muito grande quando alguém tem uma história “foda” para contar e a história passa a entrar na vida das pessoas, a inspirá-las e a torná-las melhores. Hoje, abro a minha página, leio as mensagens que recebo e páro para pensar no quão responsável sou por estas pessoas. Qualquer coisa que eu diga tem um peso muito grande.

 

Já disse em várias entrevistas que, enquanto crescia, diferente da maioria, sentiu a falta de referências. É hoje uma para essas pessoas?

Missão

Totalmente. E é isso que me completa. Eu não tive ninguém para inspirar-me. Agora, pessoas com deficiência que são LGBT podem olhar para mim e pensar: eu sou igual a esta menina, a minha história não é diferente da dela, se ela pode, eu também posso. E mulheres que têm a auto-estima no chão podem olhar para os seus corpos no espelho e pensar: a Leandrinha é maravilhosa do jeito que ela é. Posso empoderar essas pessoas. Um destes dias, dei uma entrevista em que falava no quão importante é as pessoas conhecerem o poder que têm dentro delas; quando têm consciência desse poder e onde podem chegar… a vida muda. A partir do momento em que eu tive consciência de quem eu era, de qual que era a minha função no mundo, a minha vida mudou.

O tabu da sexualidade ainda persiste, considera Leandrinha

Passou a infância a fazer cirurgias até ao momento em que decidiu parar, vetando qualquer hipótese de algum dia andar. Isso é interessante: também já disse que nunca tinha sido uma prioridade para si andar, muitas vezes são os outros que pressionam para um “ideal”. Gostava de saber mais sobre o seu processo de aceitação do corpo e de como foi remar contra a maré aí.

O processo foi muito lento. Há pessoas que morrem sem conhecerem o seu próprio corpo, sem o aceitarem. Até aos dez anos, eu não tinha a perspectiva de vida que eu tenho hoje. Nunca sonhei ser uma referência, nunca sonhei estar a dar uma entrevista para Portugal, nunca sonhei subir a um palco para falar para três mil pessoas. Ao pensar nessas cirurgias todas… eu estava feliz como estava, estava completa, realmente andar não era algo que me faria mais mais plena, mais segura de mim. Se eu tivesse andado, não teria por que lutar.

Não teria uma causa…

Sim, não teria uma causa. Também depende muito das pessoas. A minha realidade, o meu conforto já estava no espelho. Talvez a grande maioria sonhe andar, sonhe seguir a sua vida "normal". Poderia ter sido operada e talvez estivesse a andar, mas não quis. Tenho coisas para fazer, não quero estar presa a essas cirurgias — já fiz mais de 20. Não queria mais. E eu era uma criança

 

Sim, nem parece que tem apenas 22 anos. Foi obrigada a crescer depressa?

Sim, exactamente. Com seis anos sabia que poderia morrer. E se eu morresse ia deixar a minha família, ia deixar as pessoas que me amam a sofrer. Entrava para as cirurgias com essa consciência, foi muito pesado. Sabia que poderia não voltar, mas também sabia que que era para o meu bem. A minha família, a minha equipa médica, a minha avó, que sempre me acompanhou em todas as cirurgias, a minha tia… toda a gente me preparava para o que ia acontecer. Eu sabia de tudo.

Não lhe escondiam nada.

Não, nada. Até porque eu era uma criança muito articulada, cresci rapidamente. E esse crescimento precoce influenciou o que eu sou hoje. Eu sou muito atacada na Internet por grupos de ódio, estão ali para gozar com a minha deficiência, com a transexualidade, e isso não me abala mais. Passei por uma história de vida que me tornou inabalável. Tenho coisas mais preocupantes para pensar… o meu cabelo está sem hidratar, sabe? (risos). Preocupo-me mais com isso do que com dar reboque para os problemas. Acho que já passei pelos meus maiores problemas e hoje brindo feliz à minha vitória.

 

Qual foi o papel da sua família na sua descoberta como transgénero?

Eu assumi-me com 17, 18 anos, relativamente tarde, sobretudo tendo em vista que hoje já há meninos de 12 anos a assumirem-se (o que é invejável para mim). A primeira pessoa a quem eu contei sobre a minha sexualidade foi a minha mãe. Disse-lhe “mãe, sou gay”. E ela respondeu “eu já sabia”. E aí eu chorei dez anos da minha vida, de alegria. Quase que Noé passou com uma arca nas minhas lágrimas (risos). Primeiro assumi-me como gay e logo depois descobri-me “trans” e, mais uma vez, a minha família apoiou-me. Na altura em que eu usava extensões era a minha avó que me alisava o cabelo. A minha mãe compra a minha lingerie. Não tenho uma história triste para contar. Nunca fui agredida, nunca me mandaram sair de casa, nunca passei por um episódio de transfobia na rua. Tive muita sorte e tenho essa consciência, que isto não acontece em todas as casas. Daí tentar inspirar as outras pessoas: a história boa ainda está para vir.  

 

Primeiro, identificou-se como homossexual e só depois como “trans”. Como foi esse processo?

Assumi-me como gay e, menos de um mês depois, assumi-me como “trans”. Sempre soube que era diferente dos outros meninos. Mais efeminada, só me interessava por brinquedos de meninas, amarrava coisas no cabelo para fingir que era cabelo. Eu era naturalmente uma menina — a minha avó diz isso, a minha mãe também. Para mim foi simples, e isso também é uma coisa de que eu tenho consciência: há muitas pessoas para quem o processo de se descobrir “trans” é muito lento, doloroso, pesado. Para mim, quando eu descobri o meu corpo, comecei a entender o meu corpo primeiramente como uma pessoa com deficiência: um corpo torto, um corpo limitado. A partir daí já tinha resolvido os meus problemas. A minha sexualidade era a coisa que menos me importava, só tinha de encaixar o que eu sou no que eu era. Foi muito rápido, muito natural.  

 

Fez cirurgia de reatribuição?

Não, ainda não fiz uma cirurgia e isso também é um assunto muito polémico. Geralmente, a primeira coisa que os “trans” querem é pôr seios e sonham com a cirurgia de reatribuição, mas, para mim, ter peito não é necessariamente uma obrigação. Eu já estou bem com o meu corpo. Pretendo pôr seios, para mim mesma, para quando me olhar ao espelho me sentir mais completinha, mas a minha vida não gira em torno dos meus peitos (risos). A cirurgia não tenho vontade de fazer. Não acho que uma vagina me iria tornar numa pessoa mais respeitada, mais ouvida e não é uma coisa que me faria mais completa. E o importante é uma pessoa sentir-se bem, em primeiro lugar.

É uma perspectiva algo aberta, queer.

Este assunto levanta um debate muito grande. Na minha vida, o que mais me importava era olhar-me ao espelho e entender o meu corpo. Por que é que ele era torto, por que é que eu não andava, por que é que a minha voz era anasalada. Para mim isso era um problema grande; a minha sexualidade já passou a ser uma coisa mais simples, passa a ser algo mais natural. Querendo ou não, eu não tenho um corpo perfeito. Se eu tiver seios, não me vai tirar da condição que eu tenho e isso — o que vou dizer pode ser muito polémico — para mim é muito insignificativo.

 

A Leandrinha nunca aparece numa posição de vítima — como muitas pessoas em condições semelhantes são encaradas. Como se chega a esse lugar de força?

Quando eu me comecei a compreender como pessoa com deficiência, passei a aceitar o meu estilo diferenciado, o meu cabelo colorido, os meus piercings, as minhas tatuagens. Passei a entender a minha transexualidade e isso empoderou-me. Eu sou uma pessoa muito forte. Quando reconheço essa força, quando reconheço que sou muito “foda”, passo a inspirar outras pessoas. A minha força vem daí. Quando quebro esse paradigma de ser uma “cadeirante” que não está dentro de casa, que não sofre com o seu corpo, que não é vítima da sociedade, vítima de si mesma. Quando quebro o paradigma de que uma mulher “trans” não pode ocupar lugares de respeito porque quem os ocupa são os homens hetero normativos e religiosos. Quando uma mulher “trans” e “cadeirante” tem o seu cabelo colorido, maravilhoso, e mesmo assim ela ocupa um lugar significativo na sociedade e tem um respeito muito grande do Brasil todo… acho que percebe que a vida muda.

Mas toda a gente tem dias maus...

Sim, todos os dias há uma luta diferente. Agora, depende da pessoa fazer do problema realmente um problema ou passar por cima dele. Ou morre por causa do problema ou vai andar de mão dada com ele. Eu optei por andar linda com o meu problema, optei por ser amiga do meu problema. 

Vi que imensas mulheres também lhe fazem perguntas sobre o seu cabelo, até sobre maquilhagem. Sente-se bem nesse papel?

Agora já me estou a sentir uma blogger (risos). A minha vaidade, a minha beleza virou símbolo para essas pessoas, mulheres, homens, gays. E adoro! Eu não tenho um corpo belíssimo, tipicamente o padrão que a sociedade impõe, mas eu estou bela, belíssima e sinto-me muito bela. Isso abre um leque de possibilidades enorme para essas pessoas porque a maioria não tem uma beleza padrão e passa a reconhecer também que é bonita tal como é.

E, já agora, qual é mesmo o segredo do seu cabelo?

O meu cabelo… só o meu cabelo já dá uma entrevista (risos). Eu tenho uma relação muito forte com o meu cabelo. Tornou-se um ícone muito grande, sinto-o como algo sagrado para mim. E tem outro significado: já começo a ser conhecida como a menina do cabelo colorido. E depois vem “trans”, “cadeirante”. Isso é muito simbólico. O segredo é cuidar muito, dá muito trabalho. E “bater” muito cabelo na cara da sociedade, na cara das inimigas principalmente (risos), e viver a vida como se não houvesse amanhã.

 

Vi no seu blog que escreve contos eróticos. São inspirados em experiências reais?

Eu sou uma pessoa que — pode não parecer — atrai muitos olhares, olhares de desejo mesmo. Não tenho namorado, não me quero prender a um relacionamento, mas sou uma pessoa bem solicitada (risos). Retiro muitas coisas boas das experiências sexuais e todos os contos são baseados em factos reais. Isso prova também que as pessoas com deficiência fazem sexo gostoso, maravilhoso, louco. Ainda existe esse estigma de que as pessoas com deficiência não fazem sexo, que são vegetais, são abóboras e plantas. É mentira. Eu sou capaz de dar e receber prazer. É uma lição muito grande nos meus contos.

No vídeo que se tornou viral estava com uma t-shirt em que se lia “Fora Temer”. Como vê a situação do Brasil actualmente?

É assustador. É que dá medo. A política no Brasil está a passar por um momento muito triste, os nossos direitos estão a ser sancionados e está a piorar. Quando há a possibilidade de alguém como Jair Bolsonaro [polémico deputado próximo da extrema-direita] entrar na presidência ainda fico com mais medo. O momento é muito delicado. É tempo de nós, brasileiros, nos unirmos e prestarmos mais atenção a quem nos representa e cobrar-lhes um posicionamento. 

Sugerir correcção
Comentar