As urnas não constroem uma democracia

Os políticos andam na televisão a dizer que vão ganhar mais autarquias aqui e acolá, na verdade ninguém lhes liga porque cada um vota em quem conhece, querem lá saber de partidos

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Ints Kalnins/Reuters

O Miguel bebia uma mini, o Luís chegou com um traçado e tremoços. O Miguel vota no rosa e é do FC Porto desde pequenino, o Luís vota no laranja e é do Benfica até morrer. Mas, lá na terra, vão ambos votar no Joaquim da Lurdinhas, um homem honrado, vai todos os domingos à missa com a Virinha e os filhos, Marcolino, Marco e Martinho. Já ninguém se lembra do caso que teve com a Milinha há uns anos, mas ninguém se esquece da Nossa Senhora das Almas Descontentes que está na rotunda à beira do tribunal. O Luís benze-se três vezes quando passa na rotunda, a pé ou de carro.

A conversa começou. O Miguel atirou que os políticos são todos iguais, na altura das eleições andam pelos mercados e visitam toda a gente em todo o lado, ouvem as reclamações das pessoas, acenam com a cabeça, com aquele sorriso amarelo, e pronto. Passam as eleições e querem lá saber, metem-se no gabinete e inauguram obras. Não querem saber dos nossos problemas nem das nossas opiniões, e quando queres apoio nem te recebem ou recebem e não dá em nada. Andam na televisão a dizer que vão ganhar mais autarquias aqui e acolá, na verdade ninguém lhes liga porque cada um vota em quem conhece, querem lá saber de partidos.

O Luís concordou enquanto puxava outro tremoço. Ria-se e dizia que tinha pena de não viver em Gondomar, que se vivesse ainda ganhava um electrodoméstico ou outro, e que o maior é mesmo o tipo de Oeiras, diz o que todos pensam, devia era arrasar aquelas barracas todas e mandá-los para o país deles. O Miguel dizia que eles não têm país. O Luís jurava a pés juntos que tinham que ter. O Miguel insistia que eram nómadas e a discussão lá continuava enquanto pediam outra mini e outro traçado.

O Miguel contava que tinha arranjado trabalho a distribuir publicidade pelas caixas de correio, cinco horas por dia, 200 euros por mês limpinhos, sem descontos nem essas tretas. Justificava-se, irritado, que um gajo passa a vida a pagar impostos e não são poucos e, depois, não recebe nada em troca, quer andar de camioneta ou de comboio e é o “deus me libre”, vai às urgências e nunca mais de lá sai, é atendido e é uma pressinha que nem chega a dizer o que lhe dói, os putos andam na escola e só de livros um gajo tem que pedir um empréstimo ao banco.

O Luís retorquiu que sempre eram 200 euritos e que era melhor do que nada. Pelo menos não ficava em casa a receber o rendimento social de inserção, a chular o Estado, e que se aqueles preguiçosos do Bairro da Fortuna quisessem também podiam trabalhar, porque mais vale receber pouco mas pelo menos fazer alguma coisita pela vida. É verdade, um gajo tem é que trabalhar, continuava o Luís e aproveitava para incentivar o empreendedorismo. Contava o caso do Alfredo, também lá da terra, de famílias humildes, formou-se arquitecto, agora tem uma empresa e qualquer miúdo que saia da faculdade pode sempre lá estagiar, não recebem nada mas ganham experiência, dizia ele que um gajo, para construir uma vida, tem que fazer alguns sacrifícios.

O Miguel acenava concordando, e dizia que as pessoas é que não se esforçam, e que o país estaria bem melhor se houvesse mais gente a fazer-se à vida. Dizia que tinha o 8.º ano, não dava para a escola. Contava que os professores colocavam-no no fundo da sala e sempre que falava mandavam-no calar, em casa os pais já lhe diziam que ou tirava um curso profissional ou ia trabalhar, não tinha nascido para os livros, que era burro. Decidiu mandar-se para o trabalho. Um gajo nasce e se é pobre, haja mãos e corpo que te valham, se os teus pais tiverem dinheiro metem-te num colégio e dás em médico ou advogado, e se compras as notas ninguém quer saber. É o país que temos.

O Luís ria-se e contava que até fez o 9.º ano, chumbou três vezes e os professores passaram-no para ele se ir embora, já não o podiam ver mais na escola. Fartou-se de levar na cabeça em casa por faltar às aulas e tirar más notas, e depois nem podia falar, ninguém queria saber. É o destino, um gajo nasce para o que dá, temos que aceitar.

De repente passa a Maria da CDU. Diz o Luís, olha a comunista, se te apanhavas no poder ainda construías um campo de concentração na horta da tua mãe. A Maria ignorou e continuou. O Miguel riu-se e disse-lhe que foi o Hitler quem construiu campos de concentração. O Luís irritou-se. Quero lá saber, vai dar tudo ao mesmo. E, sinceramente, era o que era preciso, metiam-se lá todos os que por aí andam e não interessam a ninguém, desde os que recebem o rendimento social de inserção aos imigrantes que vieram de barco sei lá de onde.

O Miguel levantou-se, puxou as calças e disse que ia embora, ia ver um filme do Van Damme. O Luís perguntou se não ia votar. O Miguel respondeu que o Joaquim da Lurdinhas ganharia de certeza e que tinha mais o que fazer. O Luís riu-se e respondeu que ele tinha razão, afinal ganham sempre os mesmos, mas pelo menos sabemos com o que podemos contar. Também foi embora ver o jogo do Arsenal que era às cinco da tarde.

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